Ao encontro dos avós indo-portugueses
Os roteiros turísticos dizem-nos que “Velha Goa” é hoje uma cidade fantasma. Não tivemos, porém, oportunidade de confirmar isso aquando da celebração dos quinhentos anos de São Francisco Xavier, já que, sempre que lá estivemos, deparámos com um movimento permanente, um fervilhar constante de gente.
Quando, ao fim da manhã de um Domingo, depois de visitarmos o bairro das Fontainhas, de mil reminiscências portuguesas, e a igreja da Imaculada Conceição em Pangim, tomámos a ponte de Linhares e a “estrada real”, Ribandar, em direcção ao Convento de Santa Mónica, onde está o Museu de Arte Sacra, criado graças à Fundação Calouste Gulbenkian, deparámos com um ambiente de grande romaria, muito comércio, parques repletos de automóveis e milhares de pessoas por toda a parte.
O tráfego tornou-se caótico e as barreiras da polícia bloqueavam a progressão dos automóveis. Depois apercebemo-nos, quando chegámos a “Velha Goa”, que cerca de duzentas mil pessoas ali estavam para homenagear o seu “santo”, num movimento que ultrapassava em muito uma celebração cristã. Hindus, muçulmanos, cristãos, todos se misturavam numa expressão viva do que muitos dos estudiosos da realidade de Goa definem como “uma ponte entre dois mundos”, no dizer de Luís Filipe Thomaz: “uma sedimentação de séculos tornou possível que influências aparentemente contraditórias se fundissem numa síntese que, recozida pelo tempo, se tornou harmoniosa”.
Pierre Gourou chamou-lhe “um duplo tesouro da civilização”. E esse tesouro fica bem à vista nesta extraordinária convergência de pessoas e influências. Aqui o diálogo de culturas, que tantas vezes é uma ficção ou um eufemismo, torna-se vivo como numa invocação hindu. Os trabalhos antropológicos de Rosa Maria Perez sobre Goa dizem, aliás, bem da originalidade e da complexidade dessas relações.
“Quem viu Goa, não precisa de ver Lisboa” – eis o que se dizia em seiscentos da antiga capital do Estado Português da Índia. E hoje o dito tem um valor reforçado, uma vez que ao ver as edificações de Velha Goa, as muitas e imponentes igrejas, podemos ter uma ideia do que seriam os templos da capital do Império, antes do grande terramoto. E se aqui estamos diante de uma sombra do passado, a verdade é que ficamos com uma ideia aproximada da “Roma do Oriente”. Quando Afonso de Albuquerque conquistou Goa, no dia de Santa Catarina de Alexandria de 1510, já a cidade da ilha de Tissuary, nas margens do Mandovi, era um importante centro, sob o domínio de Bijapur. E o apogeu da capital de “meio império” coincidiu com a construção dos principais templos chegados aos nossos dias, nos séculos XVI e XVII. Depois, a urbe foi sendo abandonada, por causa da insalubridade e das pestes, e deu lugar a Nova Goa (capital desde 1843). E há um mimetismo com Roma e com Lisboa a começar nas sete colinas: o Monte Santo ou de Sião, Senhora do Monte, Santo Amaro, Senhora do Carmo, Boa Vista, Forca e Santíssima Trindade.
A cidade era protegida por uma muralha, e onde hoje é a Porta dos Vice-Reis, inaugurada em 1598 para assinalar o centenário da chegada de Vasco da Gama, foi a antiga porta da Ribeira, local de entrada de Afonso de Albuquerque. A partir daqui desenvolvia-se o Terreiro dos Vizo-Reis, onde se situava o palácio mandado construir por Albuquerque sobre o castelo mourisco. Para leste, no seguimento da antiga porta da Alfandega, há a igreja de São Caetano, mandada construir pelos padres teatinos sob a inspiração da basílica romana de São Pedro, com uma cúpula imponente. Por aqui houve a cadeia da cidade – o Tronco, onde esteve Camões – e o Tribunal da Relação, com a capela dedicada a Nossa Senhora do Bom Despacho (cuja imagem está hoje na ermida de São Sebastião no bairro das Fontainhas). Apesar do bulício, podemos conjecturar sobre o que seria a cidade do século XVI. Seguindo o roteiro minuciosamente elaborado por Percival Noronha, memória viva das raízes indo-portuguesas, encontramos designações familiares: Rua Direita, Senado, Aljube, Rua da Conceição.
E eis-nos na Sé Primacial de Goa (1562-1628), sem uma das torres desde o século XVII, e com os seus dezassete altares, o altar-mor com a representação magnifica em talha dourada da vida de Santa Catarina, a cruz milagrosa, que o povo diz aumentar de tamanho pelo fervor popular, o balcão dos Vice-Reis e os portões da capela do Santíssimo em estilo mogol. Nas traseiras, fica o palácio arquiepiscopal, mandado construir por D. Aleixo de Menezes, no início do século XVII. E a seguir, a igreja do Espírito Santo, do Convento de São Francisco de Assis, com o portal manuelino encimado pelas armas de Portugal, que é modelo da melhor construção setecentista. No convento franciscano está o museu arqueológico e lapidar de Goa, onde encontramos a galeria dos vice-reis. A sul da catedral e do complexo franciscano há hoje jardins, agora cheios de peregrinos que abancam e pernoitam, graças à amenidade do clima de Dezembro. Outrora havia um dédalo de ruas e construções, o Pelourinho, o Bazar Velho, mercado de dimensões apreciáveis onde existia uma “feira da ladra”, o Terreiro dos Galos, onde havia apostas e a velha Rua da Ala dos Namorados, onde viveu Garcia de Orta, o autor de “Colóquio dos Simples”.
Foi aqui que os jesuítas construíram a Casa Professa da Companhia e a basílica do Bom Jesus (1594-1605), agora centro de todas as atenções. A construção em laterite liga o estilo jesuítico ao gosto decorativo indo-português. No altar-mor, Inácio de Loiola é representado num característico momento de êxtase, que o Hinduísmo bem sabe encenar – “Quem sordet Mihi tellus quum coelo auspicio” (“Quão vil me parece a terra quando contemplo o céu”). No Bom Jesus está o corpo de São Francisco Xavier (1506 – 1552), “Goencho Sahib”, o Senhor de Goa, como aqui é conhecido o Apóstolo das Índias, nascido em Navarra, mas vindo a solicitação de João III. A sua memória está no centro de toda esta espiritualidade fantástica. A fila ininterrupta para ver o esquife de prata da autoria de artífices goeses, que deixa ver o corpo, sobre um mausoléu florentino oferecido por Cosme III de Médicis, obriga a uma espera de cerca de uma hora, e todos aguardam a pé firme, homens, mulheres e crianças. É um mistério saber por que razão se mantém vivo um culto tão forte até aos dias de hoje. O carisma é indiscutível e permite um autêntico diálogo entre culturas e religiões. Viajante incansável, Francisco de Xavier combateu e recusou a cegueira dos poderosos, dos intolerantes e dos abusadores. A capacidade de compreender talvez seja, assim, a chave da devoção de que continua a ser alvo. E em cada lugar de Goa que visitamos sentimos que hoje a memória indo-portuguesa, simbolizada pela permanência da invocação de Francisco Xavier, faz parte de uma identidade, sem complexos nem dramatismos, que apesar da História e das suas vicissitudes e erros traduz uma ponte civilizacional que pode funcionar…
Em “O Riso de Deus” de António Alçada Baptista, o Doutor Domingos Lobo, com a sabedoria da velha Goa, diz, a descer a nossa Avenida da Liberdade, ao seu interlocutor Francisco: «– Sabe, a Europa é o continente da dúvida e nós, lá no Oriente, estamos presos pela fé. Eu não sei ainda bem se são as dúvidas se as certezas que fazem mover o mundo». Lembrei-me disto quando visitei Cochim, depois da imersão total em Goa. De facto, só podemos compreender a Índia, com a sua fantástica riqueza espiritual, através da ligação entre a memória e o tempo, o presente e o futuro, e de consciência serena dos limites, longe de qualquer cegueira dogmática. Sentimo-lo a propósito do fenómeno inter-religioso do culto de São Francisco Xavier, mas também ao visitar o templo hindu de Shri Mangesh ou a mesquita de Safa, em Pondá. O Hinduísmo procura incorporar uma pluralidade de experiências e permite a coexistência de diversas visões do mundo, daí o cadinho de culturas que encontrámos. Mas não dá para dizer mais, quando o essencial é ver e sentir, num sistema de imersão total, ao encontro dos nossos avós indo-portugueses e da vitalidade da Índia…
Guilherme d’Oliveira Martins
Presidente do Centro Nacional de Cultura
In Clube do Colecionador