O Nosso Tempo

A NOVA FORÇA DOS SÍMBOLOS

O Papa Francisco condenou o acto de Rouen, como todos os outros, apelando a que cesse o mal absoluto do terrorismo que tantos milhares de vítimas tem feito, mormente entre irmãos da mesma Fé islâmica.

Aliás, num Médio Oriente instável, como em poucos momentos da sua História recente, é o quadro mais comum, esse de muçulmanos serem vítimas da vingança dos seus irmãos desavindos que pertencem a outra “família” da tradição religiosa, fundada pelo Profeta.

E assim, não são pontes de entendimento as que unem sauditas e iranianos, iemenitas de fidelidades divididas entre uns e outros, assim como iraquianos e sírios, vítimas também de dois campos, cujo combate não conhece fronteiras.

E nos ataques bombistas, do centro de Cabul como do centro de Bagdade, dos escombros de Aleppo e dos subúrbios de Damasco, no Mali como na Nigéria, morrem quase exclusivamente muçulmanos, às mãos de outros muçulmanos.

O sentido de tal combate – de mais do que duvidosa justificação teológica (não é Deus, para todos, o Ser misericordioso?) – só pode ser explicado, obviamente, se a motivação religiosa estrita tiver outros condimentos, bem diversos, o étnico, o tribal, o sociológico, o cultural, o histórico – donde avulta o político.

******

Mas no decurso de tal combate, uma nova força simbólica aí está agora. Em pleno coração da Europa, uma igreja católica foi atingida pela sanha terrorista. É finalmente a guerra de religiões, num continente berço das diferentes correntes do Cristianismo. É o Islão contra o próprio Cristianismo, é o Oriente contra o Ocidente. É a vingança histórica das cruzadas, há tanto tempo no lume brando de um Médio Oriente que esperava a sua hora. Acreditar nisto, ou deixarmo-nos impressionar por isto, seria a nossa derrota, perante a propaganda apocalíptica do islamismo político, camuflado com propósitos religiosos.

O bárbaro assassinato de um sacerdote octogenário, Jacques Hamel, em Saint-Etienne-du-Rouvray, há pouco mais de dez dias, nos subúrbios de Rouen, quando celebrava missa, é mais uma prova da cobardia repugnante dos “pseudo-heróis” do nosso tempo. Para quem tudo no Ocidente constitui alvo a abater, mormente a normalidade confiante de sociedades livres e razoavelmente organizadas. Alvejando, assim, simples veraneantes de uma pacata cidade francesa, com um camião convertido em arma mortífera, ou um centro comercial alemão, repleto de jovens descuidados, uma sala de espectáculos como o Bataclan ou agora uma igreja, os episódios repetem-se.

E o resultado é o óbvio: as populações tornam-se intranquilas e desconfiadas; as forças de segurança começam a ficar diminuídas na sua autoridade, porque criticadas pela ineficácia do seu combate ao flagelo; os serviços de recolha de informações parecem estar cada vez mais a reboque dos acontecimentos; e os líderes políticos são objecto de manifestações hostis, por quem cada vez confia menos neles. População civil, forças de polícia, poder político são assim alvos privilegiados de um combate desigual.

Neste contexto, dirigindo a sua acção para símbolos, instituições ou valores que definem “o Ocidente”, os mentores do terrorismo ganham o direito à publicidade mediática, gratuita e permanente, um dos objectivos da sua campanha destinada a fragilizar as nossas sociedades, na sua globalidade, com acções apesar de tudo isoladas.

 

Retrato do terrorista isolado

Os casos mais recentes de ataques na Alemanha parecem evidenciar uma “nova” tipologia do terrorista, isolado, de comportamento errático que, com problemas de integração social, mas sem motivação política, perpetra a acção última, com a mesma encenação do terrorismo “clássico”. Tais iniciativas têm na sua origem tendências suicidas, em quadros patológicos que relevam da Psiquiatria, mais do que da Ciência Política, o que torna o quadro extremamente complexo, sendo impossível de detectar, sem sinais exteriores, o que se passa no foro íntimo de cada um. Por isso, no seu desejo de dar resposta à inquietação da população, a embaraço para as autoridades é óbvio e o senso comum faz-nos perguntar: como detectar a tempo, como prevenir?

Na busca ansiosa (e compreensível) pela segurança total – que não existe e não existirá nunca – a população de Nice recebeu com hostilidade as palavras que nesse mesmo sentido proferiu o Primeiro-Ministro Manuel Vals, quando foi prestar homenagem às vítimas do Passeio dos Ingleses: Não é possível prevenir tudo, evitando assim a repetição de dramas semelhantes.

Compreende-se que essa análise, honesta e realista, seja a mais perturbadora para quem pensa, infantilmente diria, que as autoridades, em cada país europeu, têm soluções milagrosas para um contexto social e securitário dos mais difíceis.

E esta quase confissão de impotência, por parte das democracias, é o maná que faltava à extrema-direita, na travessia do deserto a que parecia votada desde 1945.

 

Promessas de um Islão moderno?

A ideologia totalitária islamista está, como se intui, nos antípodas do principal credo das sociedades ditas liberais, e de todas aquelas que, fazendo parte da vasta amálgama dos infiéis, representam o mundo bárbaro do exterior. Mundo por definição hostil, ímpio, descrente, criminoso e dissidente que é preciso subjugar, para converter. Na óptica desses novos iluminados, vastíssimas áreas civilizacionais como a chinesa e a indiana estão também na mira desses esforçados construtores do futuro… deles. Na futura ordem mundial islâmica, esperam os seus prosélitos, esse é todo um mundo condenado a desaparecer. Requiem pois à diversidade cultural e religiosa porque esse é o mundo a derrotar.

Não é esta senão mais uma expressão do totalitarismo e do imperialismo que, com diversas cambiantes, tem atravessado a História. Por isso é fácil a analogia com outros processos de acumulação e expansão territorial do poder. Acumulação, mormente, por uma só pessoa, como aconteceu com muitos dos principais actores da Segunda Guerra Mundial. E projecção de tal poder acumulado para além das fronteiras naturais do centro ideológico, numa nova forma de imperialismo ideológico.

Recorde-se a sua génese mais próxima no acentuar da conflitualidade no Médio Oriente e o seu impacto sobre a Europa e os Estados Unidos, de que o 11 de Setembro de 2001 foi, numa primeira fase, o clímax. E depois e como resposta, hoje sabe-se que inadequada, com a invasão do Iraque e todas as suas consequências, na fermentação das recentes organizações terroristas.

Com tudo isto em mente, e com o fervilhar das minorias islâmicas na Europa e na América, torna-se cada vez mais urgente o aprofundamento teológico e doutrinal de um Islão mais moderno, compatível com as exigências da liberdade religiosa em sociedades plurais.

A obra e a organização do clérigo islâmico Fethullah Gulen, o inimigo jurado do Presidente Erdogan, no contexto do golpe de Estado abortado de meados de Julho, na Turquia, parecem corresponder a esta necessidade de repensar o Islão em bases modernas. Por que inspira ele tanto receio ao chefe de Estado turco?

Carlos Frota

Universidade de São José

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *