Setenta vezes sete
É naturalmente uma pequena provocação o título desta crónica, recordando a contabilidade bíblica do perdão… Cristo colocou a fasquia alta demais! Ainda se fossem só sete vezes! E mesmo assim…
Isto a propósito do apelo do Papa ao perdão entre católicos e protestantes.
Num jantar entre amigos, há alguns anos já, ouvi da parte de um católico convicto, de comunhão diária, a maior crítica aos pontificados desde o Concílio Vaticano Segundo – e mormente o de João Paulo II – por o Santo Padre ter iniciado os encontros inter-religiosos de Assis e, sobretudo, por ter tido a «ousadia» de pedir desculpa ao mundo pelos erros históricos da Igreja.
No diálogo inter-religioso, o meu interlocutor via a ameaça do sincretismo. E na reaproximação entre cristãos, antecipava perigos para a Identidade católica, moldada por uma Tradição intocável, expressão que era de um imaginário passado sem mácula.
Insurgia-se o meu interlocutor contra tal iniciativa, por a considerar enfraquecedora do prestígio da Igreja, como instituição.
Não pude deixar de recordar tal episódio, ao saber há dias que o Papa Francisco reiterou o gesto de humildade, ao ir ao encontro de outros cristãos, agora em direcção aos luteranos, pedindo uma atitude recíproca de perdão, entre católicos e protestantes e preparando assim a sua visita a Lund, na Suécia.
De facto, em Outubro, aquando da celebração do quinto centenário da Reforma, início mesmo da divisão que se mantém ente os seguidores de Jesus Cristo, o Santo Padre estará presente para testemunhar, de modo muito forte, o seu desejo de unidade entre todos os cristãos.
E isto, para fazer desaparecer da memória, séculos de incompreensões e de conflitos sangrentos que os poderes políticos de cada época souberam manipular a seu favor.
Lutero, cuja seriedade de propósitos parece inquestionável, ao colocar à porta da igreja de Wittenburg as suas noventa e cinco propostas de reforma, foi o exemplo decisivo que a História do Ocidente registou de uma “ovelha”, devorada imediatamente pelos “lobos” da política europeia do seu tempo.
Nunca mais a Europa (e parte apreciável do mundo) seriam os mesmos, a partir desse contributo que foi interpretado como rebelião, como desafio à autoridade da Igreja, por parte do monge alemão.
Quando no liceu estudamos, nos livros de História, as guerras de religião, numa Europa dividida em ódios vários, nem sempre temos consciência das sequelas profundas que duraram até aos nossos dias.
Não pude deixar de pensar nisto mesmo, também, por analogia, há dias, quando o Papa Francisco visitou a sinagoga de Roma, reiterando a condenação inequívoca do anti-semitismo e repetindo o gesto de amizade, para com o povo judeu que João Paulo II iniciara e Bento XVI prosseguira.
Afastando, com palavras simples mas firmes, o preconceito histórico de dois mil anos de “culpa colectiva”(!) dos judeus, pela morte de Cristo, uma aberração que o próprio Jesus afastou, nos momentos derradeiros, por reconhecer que os seus algozes “não sabiam o que faziam” – o Papa deu ênfase à plena validade da aliança do povo eleito, numa referência à ortodoxia do Judaísmo, de que o Cristianismo se considera sucessor.
Rever a História
Rever a História é um acto de suprema coragem, desde logo porque tal acto nunca é neutro, nas suas consequências. Fere sempre quem erigiu expressões transitórias do passado em dogmas absolutos, numa confusão entre o essencial e o secundário que é fruto da ignorância, do orgulho ou de ambos.
Não posso deixar de admirar ainda mais o Santo Padre por esta sua saudável, esperançosa iniciativa, em direcção às Igrejas protestantes. Num mundo fragmentado, rende mais reafirmar divisões do que tentar ultrapassá-las. Mas esta não é seguramente a missão do Papa.
Muito ignorante do universo protestante, até ao fim da minha adolescência; e marcado, como todos nós católicos, pela acusação inapelável de heresia, lançada contra parte apreciável da comunidade cristã no mundo, foi com o decorrer da vida adulta que, de forma um pouco anárquica, fui descobrindo a realidade multifacetada desses outros irmãos na Fé.
Dois episódios da minha infância me ligam todavia à realidade do Protestantismo.
O primeiro foi o de ter mostrado em casa um lindo livro, encadernado a vermelho, do Novo Testamento, que alguém me oferecera, se não me engano à porta da igreja onde fui baptizado. Depois de uma observação sumária da obra, o livro foi-me interdito e retirado, por ser afinal o “perigosíssimo” exemplar de uma edição protestante dos Evangelhos.
Aí tive consciência de que, em muito do essencial, estamos todos divididos, percepção que a vida por que enveredei me tem dado, todos os dias, sobejos exemplos.
O outro episódio foi de influência mais duradoira. Vivi até ao fim da minha adolescência, tendo na vizinhança um templo dos adventistas do sétimo dia. E em cada manhã de sábado, era acordado com os cânticos lindíssimos do seu serviço religioso que congregava gente devota, gente de bem.
Depois, a crescente influência do mundo anglo-saxónico na cultura foi-me revelando o estatuto de minoria dos católicos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos; e o preconceito anti-Roma da cultura protestante em geral. Revelando-me também um universo riquíssimo de espiritualidade e de fervor na Fé, de comunidades bem distantes dos rigores da História e dos debates teológicos.
Mas revelou-me também outra realidade, profundamente humana: a tentação sempre presente da divisão, pelos conflitos entre os diferentes e contraditórios modos de ler o tempo histórico, expressos nas atitudes de maior aceitação ou maior repúdio do que vai ditando uma civilização a que muitos chamam já pós-cristã.
Lembrei-me da expressão, para muitos idêntica, de civilização sem Deus, o que claramente não é, se nos lembrarmos das múltiplas comunidades hiper-activas do ponto de vista religioso, na Europa e na América, mormente a comunidade hispânica de matriz católica e as comunidades de confissão muçulmana.
Nas democracias da indiferença
As iniciativas tendentes à unidade entre os cristãos assumem hoje uma acuidade e expressam uma urgência, cujas leituras o Papa sabe fazer, como poucos.
O mundo secular, para cuja emancipação a Reforma muito contribuiu, ao quebrar simbolicamente o “poder de Roma”, vê-se hoje confrontado com os seus próprios limites, perante a emergência da violência com justificação religiosa.
À racionalidade tranquila dos descrentes respondem muitos jovens europeus com a fuga para os teatros de conflito, apaixonados com o ideal de reconstrução de uma sociedade com Deus, mesmo à custa do seu sacrifício supremo.
Neste contexto, revitalizar a mensagem cristã, como proposta de uma sociedade tolerante, em paz consigo, porque não esquece nem nega a origem divina do Homem, assume uma necessidade vital, quase diria de sobrevivência.
É neste contexto exacto que se inscreve, quanto a mim e numa leitura não apenas religiosa mas também política ( de reconstrução da polis) o apelo do Papa à unidade dos cristãos.
Carlos Frota
Universidade de São José