O Nosso Tempo

Uma narrativa incompleta (I)

Aproxima-se o fim de mais um ano e começam a surgir, nos Órgãos de Comunicação Social internacionais, as tentativas de análise do que aconteceu de mais relevante, na Igreja e no mundo, em 2015.

Não me vou prestar a esse exercício cronológico, exaustivo, mas, em duas crónicas separadas, a um outro que, sendo mais subjectivo, tem pelo menos o mérito de um testemunho pessoal sobre o nosso tempo, conforme ao espírito desta minha crónica regular n’O CLARIM.

Analisar as grandes tendências do tempo presente e tentar descortinar uma direcção nos acontecimentos do quotidiano, foi sempre objectivo que me guiou, para superar o que chamaria de cegueira desnorteada do dia a dia.

Tratar-se-á pois de um inventário de alguns dos acontecimentos fortes que me marcaram particularmente – a mim – estando certo de que não me sentirei isolado, na maioria esmagadora das situações que privilegiei.

 

Do Charlie Hebdo ao Bataclan

Não surpreenderá ninguém dizer que a realidade do terrorismo pseudo-islâmico domina todo o ano de 2015, com dois marcos sinistros, tendo ambos como palco a capital francesa, o primeiro em Janeiro e o segundo em Novembro.

Desses dias trágicos de Paris fica a sensação de que a Europa e o mundo prosseguem o despertar lento – iniciado a 11 de Setembro de 2001 e recheado de episódios “menores”, do ponto de vista mediático – para a incompatibilidade total entre dois projectos de sociedade. A nossa, plural, tolerante, onde estão garantidas as liberdades fundamentais; e a outra, fanática, brutal, em nome de um Deus que não existe, senão na cabeça de gente doente, o da vingança pura e do martírio absurdo, sem sentido. E, por isso, sem justificação.

A lista de horrores é imensa já, com episódios cada vez mais cruéis, mas atingiu um dos seus pontos fortes com a morte do piloto jordano, acorrentado no interior de uma gaiola, queimado vivo e filmado na sua agonia atroz!!!

O ISIS, acrescentou aqui de facto um outro grau de horror, o que suscitou repúdio em todo o mundo, e mormente dos milhões de muçulmanos, gente pacífica e moderada que denuncia, com cada vez maior destemor, os métodos bárbaros da organização terrorista.

Na Líbia o ISIS decapitou um grupo de cristãos egípcios (coptas) confirmando mais uma vez o sectarismo religioso, particularmente anti-cristão, que caracteriza o grupo. Comunidades de crentes não muçulmanos são entretanto maltratadas, perseguidas, sujeitas a conversão forçada ou á morte.

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Com a realidade do terrorismo e com a insegurança generalizada que gera, questiona-se cada vez mais, entre segmentos da população europeia e americana não muçulmana, sobre como se posicionam, sobre o terrorismo fanático associado à sua religião os vizinhos de bairro, de rua e mesmo de prédio, que praticam o Islão, com toda a legitimidade, no quadro das sociedades ocidentais.

E como a insegurança gera o medo, movimentos como o radical PEGIDA tornam-se cada vez mais visíveis, em manifestações de milhares de participantes, nas cidades alemãs e não só, protestando contra o que consideram ser o perigo de islamização das sociedades europeias.

Certamente que o recente fluxo de milhares de refugiados da guerra civil síria não serenou tais espíritos…

Acusando os líderes políticos europeus de passividade, esses jovens (porque na maioria o são) tentam despertar as consciências para uma evolução que, consideram, se contrariada tarde de mais, constituirá batalha perdida.

Movimentos de descontentamento popular com ligações à extrema-direita, esses círculos cada vez mais críticos da classe política e do regime que representa ganham créditos no espírito do cidadão comum, lançando as sementes para uma temível, trágica repetição da História.

 

O reerguer sereno da China…

O ano de 2015 teve para mim o mérito de uma confirmação, importante para o meu entendimento da História.

Estes doze meses permitiram-me observar como dois países poderosos, representantes de duas áreas civilizacionais imprescindíveis para o diálogo universal – a China e a Rússia – conseguem marcar com tanto contraste as suas opções no mundo.

A China, fortalecendo-se internamente, pela economia e pelas reformas ousadas que estão a colocar o País em plena sintonia com o mundo do século XXI.

Somada a tantos outros eventos internacionais em que os líderes chineses participaram de forma a mais activa, a cimeira China-África deste final de ano, em Joanesburgo, é um excelente símbolo do compromisso da China com o resto do mundo. Que teve reiteradas expressões, no decurso do ano, com as múltiplas visitas do Presidente Xi Jinping e do Primeiro-Ministro Li Keqiang aos quatro cantos do globo.

E com isso tornando o País cada vez mais visível e cada vez mais imprescindível, como potência benigna (insisto nesta ideia) num mundo complexo, onde a China é cada vez mais chamada a exercer uma mediação moderadora.

 

…e o despertar sobressaltado da Rússia

E quanto à Rússia? O que sabemos do bem estar da sua população, da expansão da sua economia, das necessárias medidas de superação da renda exclusiva do petróleo? E das expectativas de futuro dos seus jovens, da irradiação cultural, artística, literária, de um povo nobre e que tanto deu ao mundo, nesses planos?

Sempre tive uma simpatia irresistível por esse povo, provavelmente por ter ficado marcado, desde a adolescência, pelas obras primas da sua literatura, pelo génio dos seus compositores e pelo idioma que, segundo me dizem, se confunde foneticamente á distância com o Português!

Desde há dois anos que o mundo olha ( injustamente? talvez…) para a Rússia, através do que se passa na Ucrânia; e agora na guerra da Síria, o que quer dizer que, para além das opções políticas internacionais da sua liderança – que restituem ao País alguma da relevância (temporária) de outros tempos – o País é interpretado internacionalmente através do seu recente protagonismo militar. O que é redutor, mas sintomático.

Há um pouco a noção de que tem sido difícil o reencontro da Rússia consigo própria. E que as mais recentes manifestações em política externa podem muito bem constituir – e tão só – uma mera fuga para a frente e um adiar de escolhas mais profundas.

(continua)

Carlos Frota 

Universidade de São José

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