A outra Europa
As relações da Rússia com a Europa têm decorrido com as tensões que se conhecem. E o recente recrudescer dos combates na Ucrânia Oriental não vai – é o mínimo que se pode dizer… – no sentido da normalização.
Prevê-se já o cenário sombrio de cada uma das partes estar servida de adversário para muitos anos. O que equivale a dizer que ficarão finalmente curados, o ocidente e o oriente europeus, da terrível orfandade de inimigo que a ambos legou o fim da guerra fria.
O mais recente desenvolvimento da lógica de castigar o outro e ser castigado a seguir é a decisão da União Europeia de vedar o acesso do embaixador russo aos edifícios das instituições europeias em Bruxelas.
E há sanções económicas contra sanções económicas, lista de indesejáveis, impedidos de viajar para o outro destino, contraposta a lista quase simétrica, de indesejáveis da parte contrária – assim se vai vivendo, nesse braço de ferro entre poderes que se defrontam e valores e visões do mundo que se antagonizam.
Valores, disse? Visões do mundo?
Pois é, a fronteira que se foi erguendo mais recentemente entre o Kremlin e as capitais da União Europeia tem um desenvolvimento não apenas administrativo ou aduaneiro, mas cultural… e ideológico!
O que serve perfeitamente os desígnios de quem desejou, de ambos os lados, uma nova e verdadeira Guerra Fria.
Fica satisfeito o complexo industrial-militar americano, para quem era insuportável a orfandade de inimigo. Com, cada vez mais, a ajuda russa, com a criação ideológica de um projecto alternativo de sociedade, fiel aos valores europeus tradicionais, e em confronto hoje com uma Europa que já não é a verdadeira Europa, a dos valores de referência, a da moral tradicional, porque na União Europeia se vive já num quadro civilizacional muito diverso, isto é, num tempo pós-europeu.
Preservando a Rússia a matriz antiga, defendendo a autenticidade europeia (ou pelo menos o discurso que a sustenta e promove) é dotar-se de um duplo argumento: o da Rússia superior e legítima.
O Kremlin teoriza pois para fazer crer não só na sua diferença, mas na sua superioridade. E apresenta o País como o herdeiro legítimo da civilização europeia de pendor universal, contrapondo-se a uma Europa que perdeu a bússola e que é já pós-europeia!
E, de repente, esbatem-se as acusações de expansão territorial à custa da soberania de outros (Crimeia); ou de se estar a fomentar uma guerra por intermediário dos separatistas de Donetsk.
Porque uma outra legitimidade surge. E o projecto russo transforma-se – por milagre do discurso – no último bastião da civilização europeia, verdadeira, não conspurcada pelos seus desvios das últimas décadas, no centro do continente.
É a reedição do Sacro Império Romano-Germânico, a suceder ao Império original, após a ocupação e saque da então capital do mundo.
Um poder, uma sociedade, uma moral, pois. E uma Igreja, a Ortodoxa, disposta, pelos vistos, a caucionar tudo.
Mas é preciso algo mais. O que é? O reconhecimento internacional desse projecto. E Roma e a Sé de Pedro foram, durante séculos, a instância política onde se chegava postulante e se saía reconhecido…
Mas – engano de época… – esta não é já a Europa em que o Sumo Pontífice era a instância internacional a quem recorrer, pelos reis cristãos. Nem o Papa Francisco se prestaria a tal papel – o de notário de um projecto neo-nacionalista – por mais antecedentes que tenha tido na diplomacia vaticana de outrora.
Putin no Vaticano. E o Papa na Rússia?
É no contexto de crispação entre Rússia e Ocidente que se insere fatalmente a visita do Presidente Vladimir Putin ao Vaticano, em 10 de Junho.
Poderá louvar-se a iniciativa, reduzindo a sua análise à constatação algo simplória de que a diplomacia russa, de súbito, deseja a paz e está, com esta visita, a dar passos nessa direcção.
Mas ninguém acreditaria nisso. E toda a gente continuaria à procura dos reais motivos da improvável visita do líder russo ao Vaticano.
Assim sendo, o que terá podido querer do Papa o Presidente Putin? Seguramente terá desejado que o Papa sirva de mensageiro da sua visão do mundo – no seu entender benigna – junto dos ocidentais, europeus e americanos incluídos. E das suas preocupações de segurança, insistindo os analistas em ver nas mais recentes atitudes russas a expressão mesma desse “complexo de cerco” que caracterizou os líderes de Moscovo no passado.
Ao ouvido atento do Pontífice não terão escapado, entre linhas, ou melhor, entre frases, algumas das razões que assistem à Rússia pós-soviética, desde o fim da Guerra Fria.
Mas a Comunicação Social internacional menciona a insistência do Papa junto de Putin quanto à necessidade de se respeitarem os Acordos de Minsk e da cooperação de Moscovo para uma solução global na Síria. Entre outros tópicos, numa conversa que foi longa.
O papel do Santo Padre, decorrendo directamente do seu múnus, é naturalmente o de agir a favor da reconciliação entre povos e nações. Como aconteceu no mais recente caso de Cuba.
Aliás este caso confirma que uma diplomacia discreta (e sem a obsessão de daí recolher louros) assegura resultados bem mais duradouros do que as conversações mediatizadas e, por isso, infrutíferas.
Em termos gerais, de que armas dispõe o Papa como medianeiro? A resposta parece óbvia: a bondade mesma das suas propostas e iniciativas e, certamente, uma influência decisiva na hierarquia da Igreja e das opiniões públicas que lhe estão afectas. Um bilião e meio de pessoas em todo o mundo. Menos na Europa e nos Estados Unidos do que noutras regiões do planeta…
O Vaticano tem, por seu lado, uma agenda própria? Claro que tem e nisso nada há nem de escondido, nem de repreensível : a reconciliação plena da Igreja Católica Romana com a Igreja Ortodoxa Russa.
A questão impõe-se pois: Com Putin no Vaticano – o Papa Francisco na Rússia? E por que não?
Carlos Frota
Universidade de São José