O Jardel da Silva de Ulan Bator

Futebolista e missionário.

Chama-se Jardel. E é da Silva. Como o outro. Que no Sporting contradançou, apesar das novelas. Mas este Jardel da Silva, natural de Curitiba, Estado do Paraná, futebolista também, optou pela longínqua Mongólia para viver. Ou melhor, para «cumprir a missão que me está destinada», nas suas próprias palavras. É que além de futebolista, Jardel é missionário. Evangelista. Da Igreja Evangélica do Cristianismo Decidido do Rogate.

«Hei cara! Nem imagina como me sinto feliz por poder falar Português com você». A exclamação inicial foi feita ao telefone. Horas depois, num dos cafés do centro de Ulan Bator, tinha pela frente um Jardel muito diferente do que aquele que imaginara logo após ter lido a notícia do UB Post, semanário em língua inglesa, intitulada “Brazilian player joins national football league”. Estava à espera de encontrar um negro de larga compleição, mas deparei com um branco franzino. «As pessoas me confundem. Julgam que sou russo, ou checheno», diz.

O primeiro ano da sua estada na Mongólia, Jardel dedicou-o inteiramente à aprendizagem da língua local. O resultado está à vista: fala fluentemente Mongol, o que o torna num dos poucos lusófonos a dominar o idioma de Genghis Khan.

Acompanha-o desde o início a mulher, Inês, e o pequeno Joshua que deu os primeiros passos nessa terra de montanhas ondulantes e céu muito azul. Entretanto, um outro rebento, menina, despontou. Jardel admite que o início foi bastante difícil: «pode imaginar como me custou, habituado ao calor todo o ano, o rigor do Inverno de aqui». Lembra-se que vestia roupas em demasia, tal era «o pavor de apanhar um resfriado». A diferença cultural reflectiu-se numa dificuldade acrescida ao nível da comunicação. «A forma de pensar e de agir desta gente é completamente diferente da nossa». Queixa-se, a propósito, da falta de pontualidade dos mongóis, para logo acrescentar: «mas nesse aspecto não diferem muito dos brasileiros, né?». Sente-se, apesar de tudo, integrado na sociedade local e até é reconhecido na rua. «Sou meio famoso por aqui…», diz com uma pontinha de vaidade. Que não lhe fica mal, já que todo ele é humildade genuína.

Originário de uma família pobre, Jardel estava destinado a jogar com bola de trapo e «garrafa de vinagre de plástico vazia». À semelhança, aliás, de muitas das actuais vedetas do futebol brasileiro. Aos 12 anos, Jardel ingressa no clube Pinheiros da divisão local do Estado do Paraná e aos 16, quando a maioria dos colegas tinha já deixado a bola, integra o Atlético Paranense. «Num total de setenta crianças só eu passei essa etapa». Etapa fundamental que o levaria a ascender ao Curitiba, equipa do primeiro escalão.

Estamos em 1985, ano em que o Curitiba se sagra campeão nacional. Jardel permanece no clube até aos 21 anos. Altura em que trava amizade com um elemento de uma igreja evangélica que o convida a participar num retiro. Jardel confessa ter acedido ao convite por essa «ser uma excelente oportunidade de encontrar uma namorada». O retiro, porém, muda-lhe a sua percepção da vida. Decide que deve aprofundar mais «o meu conhecimento sobre Jesus». O futebol, que é tudo para ele, passa para segundo plano a partir daí.

Regressado ao clube, quer partilhar com os colegas a redobrada convicção. O treinador não gosta. Acusa-o de proselitismo. Nada de pregação no balneário, senão… rua. Jardel, que é da opinião que «cada um é livre de falar e de ser ouvido», tem uma explicação: «o treinador era candomblé». Quanto a ele «um culto satânico».

Com 21 anos e uma oportunidade única pela frente de enveredar pelo futebol profissional, Jardel tem de fazer uma escolha. Ainda hesita, mas acaba por concluir que Deus lhe destinara a tarefa de «ensinar as crianças a jogar futebol». Abandona pois a carreira profissional para criar uma escola infantil em Curitiba. A igreja local paga-lhe «um salário simbólico» que lhe permite ficar à frente da «escolinha» durante dois anos.

Um encontro fortuito com um casal que estivera destacado na Mongólia, ajuda-o a tomar a decisão. Partiria para a Ásia Central. Mas antes de tão longínqua paragem, havia que fazer preparativos. Aprender Inglês, por exemplo. Em Londres integra a YWAM – Youth With a Mission (em Português, JOCUM – Jovens com uma Missão). Frequenta um curso de técnica de futebol, «reconhecido pela FIFA», onde recebe preparação não só a nível físico, mas também psicológico, acrescido de «noções de nutricionismo, segurança em campo, etc…». Um curso essencialmente prático; «as aulas teóricas esgotaram-se numa semana».

Chega à Mongólia acompanhado da família num mês de Julho. Duas horas após sair do avião, está no estádio local. «Falei com os jogadores e respectivo técnico e perguntei-lhes se podia jogar com eles». Um mês depois integra o plantel. No segundo ano, os seus serviços são requisitados pela equipa campeã nacional. Na qualidade de treinador-jogador.

Devidos às árduas condições climáticas o campeonato mongol resume-se a dois meses do ano: Julho e Agosto. Nela participam apenas cinco equipas. No fundo, «não passa de um torneio de Verão, onde se disputam 14 partidas apenas».

Quanto à situação actual do futebol na Mongólia, Jardel afirma que «apesar do desporto não se encontrar muito implantando no País, há potencial, jogadores talentosos». Existem, contudo, muitos senãos. Um deles é a falta de lugar para treinar durante o Inverno. Há que alugar pavilhões gimnodesportivos aquecidos. O que torna a prática desportiva demasiado dispendiosa.

Mas o problema é sobretudo estrutural. E para o ajudar a resolver há que incentivar a prática da modalidade entre as camadas mais jovens. Daí que Jardel tenha decidido fundar uma «escolinha», a UB United Football Club, actualmente frequentada por cerca de oitenta crianças. Na sua maioria filhos de estrangeiros expatriados oriundos de dezasseis países. Mas também a integram crianças órfãs, abandonadas ou negligenciadas. Proporcionar uma oportunidade a esses desfavorecidos, «a oportunidade que não tive quando tinha a idade deles», é o grande objectivo de Jardel.

No UB United Football Club, «onde se ensina em Inglês e Mongol», as crianças praticam duas vezes por semana. Às quartas-feiras, o brasileiro reúne os pais das crianças «num convívio desportivo de características internacionais».

As crianças que podem pagam uma mensalidade, o que permite que as outras, «os meninos de rua», assistam às aulas gratuitamente. Para Jardel é importante esta congregação. Pois «ao conviverem com as crianças pobres, os filhos dos mais ricos crescerão para se tornarem adultos conscientes da existência de semelhantes seus mais desfavorecidos. Serão certamente seres humanos mais fraternos». Jardel está convencido disso.

Joaquim Magalhães de Castro

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