A força das imagens
Há imagens que marcam épocas, pela felicidade ou pelo horror que inspiram. Como a imagem da menina que, despida, foge aterrorizada do bombardeamento com napalm, pela aviação americana, num Vietname saturado de guerra, de mortes, de destruição.
Foi essa a guerra que marcou a minha juventude, mais do que muitas outras, movimentando em protesto milhares de estudantes nos campus universitários dos Estados Unidos e da Europa.
E o pacifismo, então demonstrado por tantos, e condenado por não menos, revelar-se-ia a consciência moral, por excelência, denunciadora de uma guerra inútil.
Se o duo Nixon – Kissinger negociou o fim do conflito, por mero realismo (por ser impossível a vitória e politicamente insuportável prosseguir as hostilidades), foi a denúncia da sua imoralidade que mais fortemente feriu a consciência de vastos sectores da sociedade americana.
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Mais de meio século volvido, a fotografia da menina – que correu mundo – ainda causa arrepios. E suscitou há dias alguma polémica porque, retirada do Facebook, ao abrigo de orientações internas dessa companhia, patrocinadora da mais popular das redes sociais, na luta contra a exposição da nudez, foi directamente contestada pela chefe de Governo norueguesa, que voltou a colocar a foto no seu próprio endereço electrónico.
Para quê? Para que o mundo não esqueça. O mundo e os dirigentes do mundo. Os políticos, os militares, os líderes de opinião, mas também os media, tão decisivos na formação da opinião pública.
Porque a tentação do esquecimento é o dilema grave hoje de duas gerações já nascidas e crescidas no Ocidente, sem conflito maior, apesar de vivermos num mundo saturado de violência.
A paz na Europa foi erradamente entendida como a antecipação da paz universal. Puro engano! Mas quem contabiliza hoje, ao nível da consciência, os ataques que diariamente ceifam vidas em Bagdade ou Cabul, para não falar de todos os outros lugares, onde as câmaras de televisão não chegam e se mata e se morre, também, pelas mesmas estúpidas razões?
Sabemos de facto que o excesso de imagens violentas satura e gera indiferença. Daí a razão suplementar de preservar as mais fortemente simbólicas.
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Como a de Ali Turki, o menino de três anos, adormecido para sempre na orla do mar, numa praia estranha, sem poder chegar a esse destino mítico, sonhado pelo pai, refugiado sírio, e que o tornaria eventualmente um ser humano realizado e feliz.
Nas vagas sucessivas de refugiados que anseiam chegar às costas da Europa, num continente a recear, todos os dias, por novos ataques terroristas, quantos de nós não se põem a adivinhar, quanto aos que chegam nos barcos frágeis e a abarrotar, os que serão realmente deslocados de guerra, ou militantes radicais e, por isso, com toda a probabilidade , terroristas disfarçados?
É o medo de ter medo que gera essa distorção da realidade, a que muitos chamam realismo. E por isso raramente se tenta adivinhar quantos dos recém-chegados, dos mais jovens pelo menos, não poderão vir a ser médicos, professores, cientistas…
Essa possibilidade afigura-se demasiado “sentimental” para os nossos espíritos empedernidos, porque cada vez mais cépticos.
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A contrastar com este fluxo de imagens negativas, chega a notícia de que faleceu nos Estados Unidos uma nonagenária que protagonizou a foto-símbolo do fim da Segunda Guerra Mundial, ao ser beijada por um soldado desconhecido, no clima de euforia geral pelo fim do mais atroz conflito da História da humanidade.
O que sugere a foto? Pois todas as esperanças da paz, onde o amor é amor, a amizade é amizade, reconstruir faz sentido porque subitamente foi o presente que deixou de ser tão precário – e o futuro passou a ser possível.
… E AS FOTOS DE OUTRAS “HISTÓRIAS”
A humanidade tem pois o seu álbum de família. Com fotos de gente que abriu caminhos de maior humanismo, de progresso científico, de originalidade artística, de invenções técnicas as mais variadas.
E assim imagino, lado a lado, numa escolha totalmente pessoal e arbitrária, Einstein e Madre Teresa, Pablo Picasso e Steve Jobs, o nosso professor Egas Moniz, Fleming, Pasteur ou Marie Curie. E Bill Gates. O incontornável Bill Gates, o pacífico revolucionário deste presente que com ele partilhamos.
São gente que abriu caminhos, que mostrou luz na distância, eles mesmos faróis no vanguardismo que moldou as suas e as nossas vidas. Mas outros fecharam a humanidade num quarto sem portas ou janelas, encurralaram-na numa densa escuridão que parecia eterna: desde os ditadores do século XX europeu, até à sua obra-testamento de Treblinka e Auschwitz. Por exemplo.
Uma série de fotos sobressai ainda, deste meu imaginário álbum de família da humanidade: todas aquelas em que se vê o líder palestino Yasser Arafat a cumprimentar sucessivas gerações de políticos israelitas, formalizando uma paz… que nunca se confirmou!
E, nesta mesma sucessão de ideias, as fotos dos meninos palestinos, de pedras na mão, os de todas as intifadas, brincando de David e Golias com os soldados e os tanques israelitas.
E exactamente no mesmo registo, porque a inocência não tem pátria específica nem bandeira exclusiva, as fotos dos jovens judeus seus vizinhos, os conservadores religiosos com seus trajos severos e todos os outros, mortos num conflito que não provocaram, vítimas inocentes também do duplo fatalismo da Geografia e da História.
MORRER AO REZAR
Baralha-se um pouco a memória – e a imaginação que habita na memória – porque são imensas as fotos que teria de escolher de todos os mártires anónimos da fé que professam.
Refiro-me aos que a fatalidade converteu em vítimas, no interior de templos, sinagogas, mesquitas, só porque lá estavam a rezar.
Os hindus porque eram hindus. Os budistas porque eram budistas. Os judeus porque eram judeus. Os cristãos porque eram coptas , ou padres missionários, ou religiosas dedicadas a espalhar o bem no seio das suas comunidades. Os xiitas porque não eram sunitas e vice-versa. Etc. etc. etc.
Por tudo isto privilegiaria, a concluir, as fotos de todos os líderes religiosos em encontros de reconciliação histórica, como os Papas mais recentes com os líderes judeus e muçulmanos. E no interior mesmo do vasto mosaico de uma cristandade ainda tão dividida.
Carlos Frota
Universidade de São José