A estranha pergunta

NESTES DIAS, EM QUE O ESPECTRO DA MORTE NOS ESPREITA À PORTA DE CASA

A estranha pergunta

Ao reler por estes dias uma biografia de São Filipe Neri (“Filipe Neri, o Sorriso de Deus”, de Guilherme Sanches Ximenes, Ed. Quadrante), reparei na quase coincidência de datas de um estranho episódio, ocorrido há aproximadamente cinco séculos, num dia 16 de Março.

O protagonista viveu os anos duros da Renascença, que dilaceraram a Cristandade com as revoltas protestantes (de Lutero, de Zwinglio, de Calvino, de Henrique VIII, de Melanchthon) e fustigaram a Europa com guerras generalizadas, incluindo violências contra a cidade de Roma por parte de imperadores ditos católicos. Estes tempos difíceis foram também uma época de grandes santos, que sacudiram a tibieza e a corrupção da sociedade com propostas exigentes de renovação espiritual. Conviveram com São Filipe Neri muitas figuras deste calibre, como Santo Inácio de Loyola, São Pio V, São Carlos Borromeo, e são contemporâneos dele Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e São Pedro de Alcântara. Mas Filipe não foi herege nem reformador austero, foi um santo brincalhão, desconcertante, ao mesmo tempo que um grande santo.

Era um homem de profunda oração, mas até nisso não perdeu o humor, por vezes atrevido com o próprio Deus. Até nos milagres, São Filipe Neri foi original.

O episódio que me chamou a atenção começou de forma dramática quando a Sra. Lavinia, mulher de Fabrizio Massimo, amigo de São Filipe, estava para dar novamente à luz. O casal já tinha cinco filhas, mas o sexto parto ia muito mal encaminhado. Fabrizio recorreu a São Filipe e este, depois de rezar, tranquilizou-o com toda a segurança: tudo ia correr bem, iam ter um rapaz saudável e deveriam dar-lhe o nome de Paolo. Realmente, tudo aconteceu como previsto.

Catorze anos depois, já a mãe do rapaz tinha morrido e também uma das irmãs, Paolo adoece gravemente. A doença arrasta-se por vários meses e Filipe visita-o todos os dias. Finalmente, o jovem entra em agonia. Filipe foi chamado à pressa mas, como estava a celebrar a Missa, demorou algum tempo e só chegou quando o rapaz já tinha morrido.

A cena é fácil de imaginar: o cadáver inerte sobre a cama, rodeado pelo pai, as irmãs e os vizinhos, a chorar e a prepararem o enterro.

Filipe ajoelhou-se perto da cama em oração. Rigoroso silêncio. A seguir, pegou num frasco de água benta, aspergiu o corpo e chamou com força: «Paolo! Paolo!». Paolo abriu os olhos e disse «Padre». Filipe e Paolo ficaram a conversar um quarto de hora, como se nada fosse, rodeados pelos circunstantes, boquiabertos. A certa altura, Filipe pergunta a Paolo se queria continuar vivo ou se preferia ir para junto da mãe e da irmã, no Céu. Paolo escolheu a segunda alternativa. No processo de canonização, o próprio pai testemunhou o acontecido: «Então, Filipe, na minha presença, deu-lhe a bênção e, impondo-lhe a mão sobre a fronte, disse-lhe – e eu o ouvi: “Vai, sê abençoado e reza a Deus por mim”. E tendo Filipe dito estas palavras, Paolo, com o semblante sereno, sem fazer nenhum gesto, nas mãos desse bem-aventurado sacerdote, na minha presença…, voltou subitamente a morrer».

No castelo da família Massimo celebra-se todos os anos, no dia 16 de Março, data do milagre, uma missa em recordação deste episódio.

Nestes dias, em que talvez morram conhecidos nossos vítimas do coronavírus, nestes dias que abalam o nosso sonho de vir a celebrar cem anos, em que o espectro da morte nos espreita do lado de lá da porta da casa, Deus pergunta-nos o que preferimos. Um grande amigo meu respondeu-Lhe: «Senhor, deixo a minha vida nas tuas mãos. Sei que escolhereis o que for melhor para mim».

José Maria C.S. André 

Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

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