Myanmar

Um mapa-múndi sem Portugal

Mandalay era uma cidade alterada. Pelos vistos, a cotação do ópio no mercado do narcotráfico continuava em alta, como o comprovavam as medonhas transformações que a cidade sofrera em apenas ano e meio. Para lavar os milhões extraídos do negócio sujo, construíam-se hotéis e os automóveis mais luxuosos disponíveis no mercado. Também aqui, como no resto do Sudeste Asiático, eram os chineses que tinham, se não toda, pelo menos a palma da mão na massa.

«– São eles que controlam todo negócio do ópio na fronteira», dizia-me um condutor de riquexó. E em estreita colaboração com ambos os Governos, o chinês e o birmanês.

Além do ópio, os generais supervisionavam tudo o que fosse comércio externo de madeira, pescas e exploração de pedras preciosas e petróleo, embora se notasse um rápido crescimento da classe média nos centros urbanos, que mostravam já notórios sinais de abastança. O turismo era a única indústria com potencial à larga escala à qual os birmaneses tinham acesso directo, e, além do contrabando nas regiões fronteiriças, a única oportunidade para acumularem os tão apetecidos dólares.

Apesar de serem cada vez mais as empresas com endereços e páginas electrónicas, e o próprio Governo ter uma página, o uso da Internet continuava vedado ao comum dos cidadãos. Telefonar para o estrangeiro, se tivéssemos a paciência necessária para aguardar que a telefonista fizesse a ligação, era, isso sim, um verdadeiro achado: 500 kyats (dólar e meio) para cinco minutos e para qualquer região do mundo. Em contrapartida, enviar um fax custava dez dólares por página. O envio de um para Macau, por exemplo, ficou-me pela redonda quantia de 33 dólares. Falta dizer que estas comunicações só estavam disponíveis nos hotéis luxuosos, quase todos pertencentes a pessoas de etnia chinesa.

Despertar às cinco da manhã, devido às constantes falhas de energia, continuava a ser o pão nosso de cada dia. Sempre que isso acontecia, e a ventoinha deixava de zunir no tecto do quarto, o súbito calor instalado deixava-me pregado ao leito, quase sem poder respirar. Nada a fazer, senão aguardar que os geradores fossem postos em marcha. Então, o irritante ronronar era excepcionalmente bem-vindo: antes o barulho do que o sufoco.

A electricidade era o mais tristemente famoso racionamento birmanês. A tal ponto que consideravam Myanmar “o país menos iluminado de toda Ásia”. Ouvia-se os gerentes dos hotéis e das pensões queixarem-se de que o Governo disponibilizava electricidade oito horas por semana apenas. Oito horas de seguida. Significava que, semanalmente, havia uma noite, sorteada ao calha, em que o cidadão tinha o “privilégio” de contar com a energia eléctrica das dez às cinco da manhã. Energia que lhe alumiasse a casa, arrefecesse o frigorífico e fizesse movimentar as ventoinhas ou os ares condicionados, indispensáveis quando a temperatura média rondava os 35 graus centígrados. Quem a quisesse vinte e quatro horas por dia, oito dias por semana, teria de comprar um gerador e o combustível para o alimentar. Um luxo a que pouquíssimos birmaneses tinham acesso. Geralmente, apenas os que geriam negócios. Como factor agravante, a energia fornecida pelos geradores não era tão forte como a governamental, daí que fosse usual escutar os proprietários das pensões alertarem-nos: «hoje não temos electricidade governamental, portanto, nada de ar condicionado».

Nessa noite, de visita à igreja de Lafonds, o responsável da paróquia, o padre Canute, mostrando-me um planisfério afixado na parede, dizia:

«– Repare como estamos esquecidos. O mapa-múndi birmanês omite a bandeira de Portugal».

De facto, nos cantos do mapa utilizado para ensinar geografia em todas as escolas do País não constava o estandarte das quinas, o primeiro país europeu a estabelecer contactos com os antigos reinos do Pegu e do Arracão, embora surgissem quase todas as outras bandeiras do mundo, inclusive as de San Marino, Samoa, Guiné Bissau e Vanuatu. Não admirava, pois, que as pessoas, quando indicava a minha origem, satisfazendo-lhes a curiosidade, ficassem pensativas e perguntassem: «A que país pertence essa província ou colónia chamada Portugal?». Ou então: «Com que país faz fronteira?». Queriam saber também se tínhamos «uma língua própria» e coisas do género.

Ao manifestar a minha tristeza pela omissão, Canute (seria corruptela do apelido Canuto?), colocou-me, muito inocentemente, a seguinte questão:

«– Portugal faz parte das Nações Unidas?».

Que queriam que lhe respondesse?

E olhem que nem com o futebol nos safávamos. Horas depois, ao assistir a um desafio entre o Manchester United e uma outra equipa inglesa, acompanhado pelo bispo e o padre Peter, da paróquia de Chaunthaya, este perguntou-me:

«– Qual é o desporto mais popular em Portugal?».

Ficou pasmado quando lhe disse que era o futebol e que muitos dos jogadores portugueses integravam equipas conotadas a nível mundial. Apesar de desconhecer o desporto-rei nacional, o padre Peter passava bem por senhor abade beirão ou transmontano, com aquele seu andar curvado, barrete basco na cabeça, sempre com um cherot na boca e outro aguardando a vez no bolso da camisa.

O padre Peter redimir-se-ia da sua “ignorância” ao sugerir a criação de uma espécie de museu bayingyi. Para tal, urgia iniciar quanto antes a recolha de objectos e documentos dispersos, evitando que fossem vendidos por tuta e meia.

Era com imenso prazer que constatava um crescente interesse pelo trabalho que tinha vindo a desenvolver, sobretudo da parte do bispo, que há ano e meio parecia algo incomodado com a minha presença.

«– Estou muito contente com o que tem publicado nas revistas acerca da nossa existência. É bastante animador», dizia.

Dessa vez, pusera o seu motorista à minha disposição e mostrara-me, com certa sobranceria, um livro em que trabalhava há dez anos e o obrigara a recuar século e meio em busca da sua árvore genealógica.

«– É muito complicado fazer este trabalho, pois não existiam registos paroquiais nessa altura».

Era sua intenção encorajar os paroquianos para que também eles investigassem as suas origens, a fim de perceberem que não eram apenas birmaneses. Esperava, assim, chamar de volta à fé cristã alguns dos convertidos das antigas aldeias bayingyis. Árdua tarefa, mas D. Alphonse transbordava esperança, falando na necessidade urgente de voltar a reunir aquilo que chamava «tribo perdida» em torno de um pastor, que, naquele momento, e muito naturalmente, só poderia ser ele.

«– Se lhes incutirmos essa ideia, talvez os seus filhos venham a abraçar o Catolicismo».

E, de facto, a melhor abordagem era a religião, a principal herança dos bayingyis, transmitida ao longo dos séculos.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *