Entre a observância da Tradição e a vivência da Fé Católica
O Ano Novo Lunar é, para os chineses, a grande festa da família e os católicos não são excepção. Entre o cumprimento da tradição e a vivência da fé, poucos aspectos são liminarmente desaconselhados. A Igreja não se insurge contra a oferta de “lai-sis” e não proíbe a ida aos templos, desde que os fiéis não sucumbam ao enganoso fascínio da superstição.
A diocese de Macau dá as boas-vindas ao Ano Lunar do Búfalo com uma Missa de Acção de Graças em honra de Nossa Senhora da China, uma tradição litúrgica instituída pelo último bispo português do território, D. Arquimínio Rodrigues da Costa.
Hoje, quinta-feira, o bispo D. Stephen Lee antecipa a entrada no novo ciclo lunar com uma eucaristia de Acção de Graças, marcada para as 15:00 horas, na igreja de São Domingos. A celebração, em honra da Santa Mãe da China, é repetida em língua portuguesa ao final da tarde desta sexta-feira, o primeiro dia do novo Ano do Búfalo, explica o padre Daniel Ribeiro em declarações a’O CLARIM. «O Ano Novo Chinês é parte da cultura local, e como parte da cultura local ele é aceite pela Igreja. E é aceite em que sentido? A Igreja respeita a cultura e o Ano Novo Lunar é celebrado pela Igreja com uma certa adaptação litúrgica», esclarece o vigário paroquial da Sé Catedral para a comunidade de língua portuguesa.
Sendo amanhã o primeiro dia do Ano Novo Chinês, a diocese de Macau realiza uma celebração especial. Aliás, todas as paróquias da Diocese a cumprem, com a liturgia a ser dedicada a Nossa Senhora da China. «Há leituras especiais e a Igreja muda a liturgia do dia. Isto acontece quando se celebra uma solenidade ou uma celebração local de uma importância relevante», acrescenta o padre Daniel.
A aceitação, por parte da hierarquia local da Igreja Católica, das comemorações do Ano Novo Lunar como um caminho alternativo para a vivência do Catolicismo, subtraiu centenas de milhares de católicos chineses a um embate entre a tradição cultural e a prática da fé. Para Luís Leong, antigo candidato à Assembleia Legislativa, não há incompatibilidades significativas entre a principal festa do calendário chinês e os ensinamentos católicos, até porque a Igreja Católica soube adaptar-se às circunstâncias. «De uma forma muito clara, quase não há conflito entre a Fé Católica e a tradição do Ano Novo Lunar. A Igreja Católica teve sempre uma grande capacidade para assimilar as tradições dos gentios e isso é particularmente evidente em Macau, uma cidade com forte influência chinesa e ocidental. O nosso antigo bispo D. Arquimínio Rodrigues da Costa endereçou mesmo um pedido especial à Santa Sé em que sugeria que a festa de Nossa Senhora da China passasse a ser celebrada todos os anos, no dia do Ano Novo Lunar. Esse pedido acabou por ser aceite», recorda o jovem.
«A Constitutio de Sacra Liturgia abre portas à possibilidade da nossa fé poder vir a ser integrada em diferentes culturas; na tradição católica chinesa, por exemplo, os sacerdotes vestem de vermelho – uma cor que significa habitualmente sacrifício – durante a festa de Nossa Senhora da China, e até distribuem ‘lai-sis’ durante ou depois da Missa», sublinha Luís Leung.
Professor de Filosofia Asiática na Universidade de São José, o padre Chiaretto Yan considera que as celebrações do Ano Novo Lunar dificilmente poderiam ser vistas como indesejáveis por parte da Santa Sé por serem, fundamentalmente, a comemoração daquilo que é a visão cristã da família. O sacerdote e académico defende que a Igreja valoriza o respeito por virtudes como a sabedoria, a entrega e a harmonia, que estão inerentes às festividades do Ano Novo Lunar. «Antes demais, é preciso lembrar que o Ano Novo Chinês tem uma importância similar àquela que tem o Natal no Ocidente, no que diz respeito a aspectos como a reunião familiar. É uma festa para todos, uma celebração da alegria e da paz. Os membros da família que estão longe regressam a casa e ao seio da família», refere o padre Yan. «O jantar da noite de Ano Novo Lunar é uma altura importante e é uma boa oportunidade para que a família se reúna. No dia de Ano Novo, a primeira coisa a fazer – e a mais importante – é saudar os mais velhos. Durante os primeiros quinze dias do Novo Ano Lunar, as pessoas têm o dever de visitar os familiares e amigos (…) Na noite de Ano Novo, algumas famílias ainda cumprem a tradição de permanecer juntas a noite toda, como se fosse uma vigília, de forma a afastar as perspectivas de doença ou desastre. Outros simplificam a prática, deixando uma luz acesa durante a noite. Para os mais idosos, é importante despedir-se do ano velho e dar as boas vindas ao ano novo. Para os mais novos, é uma forma de desejar aos pais uma longa vida», aponta ainda o docente da USJ.
A oferta de “lai-sis” não só é aceite pela hierarquia católica, como é praticada dentro das igrejas, e nem a ida aos templos é desaconselhada, desde que os católicos se abstenham de práticas supersticiosas. «Os panchões e o fogo-de-artifício são uma forma de criar uma atmosfera festiva e de desejar felicidades à família. Depois da reunião familiar, muitos visitam os templos para pedirem sorte e saúde para o novo ano. Outros preferem assistir a espectáculos de entretenimento, à dança do leão e do dragão. É claro que entre estas tradições há práticas supersticiosas, como recorrer aos adivinhos, que devem ser evitadas. Na verdade, muitas destas tradições são simbólicas e têm grande significado em termos culturais. Como católicos, cabe-nos compreender as tradições, avaliar os valores culturais e, quiçá, oferecer novos significados a certas práticas», conclui o padre Chiaretto Yan.
A posição é corroborada por Luís Leong, que tem bem presentes os limites entre a observância da tradição e a vivência da fé: «Não creio que a tradição entre em conflito com os nossos princípios e doutrinas. Podemos visitar os templos não-católicos, mas devemos abster-nos de participar em actos litúrgicos, como queimar incenso para pedir aos ídolos saúde e fortuna».
A Igreja Católica reconhece, sobretudo, que o Ano Novo Lunar é uma ocasião festiva e como tal isenta os católicos chineses da obrigação de se absterem do consumo de carne à sexta-feira. O momento, frisa o padre Daniel Ribeiro, é de festa, antes do tempo de recolhimento da Quaresma: «É um tempo de festa e a Igreja pede que as pessoas façam festa nestes quatro dias principais. Na Quarta-feira de Cinzas começa a Quaresma e, começando a Quaresma, todos os cristãos são convidados a ter uma vida mais sóbria».
Marco Carvalho