O bairro da Barrah e o canhão Bibi Mariam
De novo incomodados com o congestionado tráfego, e desta feita a caminho da residência episcopal, driblamos motociclos e riquexós enquanto atravessamos uma área um pouco menos caótica que o demais espaço urbano. Falo dos lagos Gulshan e Banani, que mais do que lagos são largos canais assinalados por postes de alta tensão plantados a esmo e outras quantas reservas aquíferas de residual dimensão interligadas por duas pontes. «Esta era outrora uma zona bastante degradada, mas agora dá gosto passear por aqui», informa o motorista de peito-feito-à-guia-turístico. Vê-se que aprecia a cidade onde vive. Pese o simpático diagnóstico, a verdade é que de modo algum apetecem as águas que aos nossos olhos se apresentam, ainda bastante poluídas. A quietude do aquoso lençol translúcido, porém, permite aos visitantes passeios em gaivotas a pedal, o que já não é nada mau. Pelo caminho, entre uma miríade de possíveis distracções, retenho a imagem de quatro agentes da Polícia Turística (parecidos com os da Tailândia) encavalitados em duas motos, um homem com a beiça escarlate e os dentes pobres de tanto bétele mascado, e uma dessas vistosas carroças prateadas que não ata nem desata, presa no trânsito mas repleta de passageiros de sorrisos amplexos.
À entrada do Paço Episcopal, nas imediações do sepulcro do antigo “arcebispo de Daca, Michael Rozario”, como nos dá conta a fina lápide de granito, somos recebidos pelo padre Francis Gomes. Está a poucos dias de ser ordenado bispo e faz questão de me dizer que em Daca já não há frades agostinhos, «apenas jesuítas e franciscanos». Quiçá essa ausência se deva à conhecida conflitualidade existente entre os membros das duas ordens religiosas, que se prolongaria ao longo dos tempos. Depois, e antes de prosseguir com a fala, o padre Gomes sugere um outro clérigo, «responsável pela área da comunicação», com o mesmo apelido, «que com certeza será melhor fonte de informação do que eu». Infelizmente o tempo é escasso e é mesmo com este Gomes que vou ter de lidar. Corrobora ele a tese comummente aceite da pioneira chegada dos “padris” a Chatigão, «na companhia de comerciantes», que «após apuradas negociações com o governador local» tratariam de operar as primeiras conversões. A maioria desses conversos eram hindus de casta baixa, ou até párias, daí terem abraçado de bom grado essa nova religião que propagava a igualdade e a fraternidade para todos os seres humanos. Podemos estabelecer aqui um paralelo com o sucesso das conversões no Japão, face ao sistema social ferozmente estratificado dos dáimios e xoguns.
Continuemos a dar voz ao padre Gomes: «Progressivamente esses missionários foram-se espalhando por Puri Puri, nos bancos do rio Ichamati, afluente do vasto Padma, região conhecida agora como Barrah, de onde sou originário. Aí converteram muitos nativos atribuindo-lhes os sobrenomes Rosário, Costa e, sobretudo, Gomes». O sacerdote lembra que a esmagadora maioria desses conversos não têm quaisquer origens portuguesas, tão só apelidos portugueses. Respondo-lhe que esse é um factor de somenos importância, pois para mim «é português todo aquele que se sente português», independentemente da raça ou credo, e ele solta uma gargalhada de satisfação pois, como todos os seus paroquianos, tem o maior gosto em ser chamado de português. No entanto, com a progressiva sedimentação do rio, essa gente ver-se-ia obrigada a deslocar-se, em sucessivas vagas e progressivamente, mais para norte. Habitam hoje dezanove das aldeias da região de Hashnabad onde os agostinhos, em 1777, ergueram uma igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Ao consultar o mapa dou-me conta da existência de uma outra Barra, mais a sul, no Sutiakhati Union, perto de Nanduhar Bazar, onde um pequeno rio junta as suas águas ao bem mais caudaloso Sandha.
O padre Francis Gomes recorda que a acção missionária levaria à conversão de um filho de um rajá local ao qual seria dado o nome de António, e este, por sua vez, traria para a fé católica inúmera gente de Nagori, região situada a 35 quilómetros a nordeste de Daca, onde os agostinhos tinham já edificado uma igreja e um convento. «Existem aí actualmente sete paróquias», informa. Ou seja, Hashnabad e Nagori foram os locais onde inicialmente se fixaram as novéis populações católicas, que só numa fase posterior se transfeririam para o bairro, mais central, de Tejgaon, o Tesgão dos nossos cronistas. Eventualmente, as ordens religiosas mudariam também de residência, para o centro de Daca, «chegando ainda a muitos outros e recônditos lugares, sempre em embarcações de diversos tipos e feitios, graças aos inúmeros veios fluviais do delta». Mais de seiscentos, ao que consta.
A este ponto da minha conversa com o padre Gomes recolho e guardo uma informação não coincidente com a versão oficial do estabelecimento dos portugueses em Daca apresentada a semana passada nestas mesmas páginas. Garante o presbítero que os portugueses se instalaram inicialmente em Sadarghat, perto de Bahadur Shah, anteriormente conhecido como Victoria Park, onde ainda há uns anos apontava a sua ampla boca ao leito do Buriganga um vistoso canhão que repousa agora num dos jardins mais relevantes do burgo, o Osmani Garden. Ao oficializar o centro dos seus domínios em Daca, no início do século XVII, o imperador Jahangir ordenou que fossem fundidos vários canhões. Duas dessas peças, o “Kehan Zamzam” e o “Bibi Mariam”, respectivamente o “canhão macho” e o “canhão fêmea”, tornar-se-iam imensamente populares devido à beleza dos seus floreados decorativos.
Das 675 peças de artilharia usadas pelo general mogol Mir Jumla durante a campanha do Assam em 1661, “Bibi Mariam” era a maior de todas. Ficaria a dita, como lembrete das vitórias conseguidas, assente na margem do rio pronta a dissuadir os avanços dos piratas. Apelidavam-na de “cemitério de Mir Jumla”. Entretanto, os locais, especialmente as mulheres hindus, prestavam homenagem ao oferecer-lhe diariamente leite, flores e vermelhão, pois acreditavam ter essa arma poderes sobrenaturais. Exactamente como acontece com o Meriam Si Jagur, o canhão português presente na principal praça de Kota Jakarta, o centro histórico da capital indonésia, ao qual atribuem poderes fecundadores. É precisamente este lado mitológico, associado ao nome comum Meriam (ou Mariam), que significa Maria, que me leva a acreditar ter tido mão portuguesa (ou luso-descendente) o acto de fabrico ou concepção da mencionada peça. Não esqueçamos que os imperadores mogóis contavam nos seus exércitos com inúmeros mercenários e consultores militares portugueses. E se, na Indonésia, se pode considerar perfeitamente normal a palavra “meriam” para designar um canhão, pois é isso mesmo que significa em Bahasa (a palavra ficou no léxico popular à força dos locais tanto ouvirem os soldados portugueses, no calor da refrega, gritarem “Por Maria!”), o mesmo não acontece no Bangladesh onde canhão se designa “kamana”. Se assim é, como explicar então o termo Bibi Mariam?
Há notícia de ter sido erguida em Sadarghat, que doravante poderá ser designado de “primevo bairro português de Daca”, uma igreja da qual não há hoje quaisquer vestígios. Subsiste, isso sim, uma outra mais recente, a Holy Cross Church, nas cercanias do Loki Bazar, exactamente na fracção de terreno que separa um colégio católico para rapazes, o St. Gregory’s High School, de um colégio católico para raparigas, o St. Francis Xavier’s Girls High School. Aliás, ambos os colégios dão acesso a essa pequena igreja construída por padres franceses e em cujo portão principal está escrito o seguinte: “aberto apenas a cristãos”. Estranho, despropositado e nada comum em templos católicos este tipo de aviso.
Joaquim Magalhães de Castro