Francis Koch e a viagem ao Tibete de Freyre e Desideri
Depois de, na semana passada, termos dado um salto à China regressamos nesta edição ao subcontinente indiano. No dealbar do Século XVIII encontramos também em Agra um jesuíta alemão chamado Francis Borgia Koch, natural de Klagensttirt, admitido na Companhia de Jesus a 21 de Outubro de 1695, onde ensinaria gramática e “belas-letras”. Numa carta que escreveu de Goa em 1706 menciona uma futura “viagem à Tartária”, facto que levaria o investigador jesuíta Huonder a deduzir que a Koch estava destinado o papel de reactivador da missão do Tibete, desta vez com o epicentro em Lhasa, pois o rei local havia pedido que lhe enviassem missionários.
Koch morreria em Agra, a 8 de Outubro de 1711, sem poder assumir tal tarefa, que acabaria por cair nas mãos do jesuíta Hipólito Desideri. Este italiano conhecera em Surate, a 4 de Janeiro de 1714, o padre Joseph de Silva, visitante da Missão e do Colégio de Agra. O português tê-lo-á então incumbido de se encontrar em Deli com o seu superior, o padre Manuel Freyre, na altura “encarregado de cerca de 300 cristãos”, e a quem fora atribuído a liderança da expedição, se bem que Desideri fosse o verdadeiro entusiasta de tão aliciante projecto. Em Setembro desse mesmo ano ambos iniciaram a jornada de Deli a Lahore, “onde na época não havia nenhum missionário em exercício”, e dali a Srinagar, capital de Caxemira, onde se detiveram seis meses devido a grave doença do italiano, prosseguindo depois para Leh, capital do reino de Ladak, onde, em Junho de 1715, foram muito bem recebidos pelo rei. Este mostrou vontade que os padres permanecessem por lá o tempo necessário para fundar uma missão.
Freyre, porém, não autorizou o interregno, lembrando o objectivo e meta final da missão: o Tibete Central. Como já aqui tivemos oportunidade de relatar num outro contexto, esta viagem abrangeu todo o inóspito Tibete Ocidental, a dita região de Ngari, “dos desertos de neve”, com os sagrados Lago Manasarovar e Monte Kailash como principais motivos de atracção para os devotos do Hinduísmo e do Budismo. A dupla peregrina atingiu Lhasa em Março de 1716, mas logo após algumas semanas o padre Manuel Freyre, pouco talhado para a incumbida função, decide voltar à Índia, via Kathmandu e Patna, deixando Desideri como encarregado da missão. E o italiano ali ficou até 1721, aprendendo o idioma e as crenças locais, estabelecendo assim as bases da futura tibetologia. Manteve estudo intensivo na universidade monástica de Sera, uma das três grandes sedes de aprendizagem dos monges Gelukpa, “seita do barrete amarelo”, tendo com eles estudado e debatido temas teológicos. Hipólito seria autorizado a manter uma capela cristã nos seus aposentos e dedicou todo o seu tempo a aperfeiçoar a língua tibetana.
No final de 1717, Desideri viu-se obrigado a deixar Lhasa (devido à agitação causada pela invasão dos mongóis Dzungar), retirando-se para um hospício capuchinho na província de Dakpo, no centro-sul do Tibete. Aí, entre 1718 e 1721, compôs cinco obras em Tibetano nas quais explanava o conceito da doutrina cristã tentando ao mesmo tempo refutar os conceitos budistas. Como estratégia, Desideri recorreu às técnicas tibetanas de argumentação escolástica e aceitou as partes do Budismo que não considerava contraditórias aos ensinamentos católicos. No entanto, desde 1703, os missionários italianos da Ordem dos Capuchinhos haviam sido destinados pela Propaganda Fide (o ramo da administração da Igreja que controlava a actividade missionária católica em todo o mundo) à missão tibetana.
Três monges capuchinhos chegaram a Lhasa em Outubro de 1716 e logo presentearam Desideri com os documentos que lhes atribuía o direito exclusivo à missionação no Tibete. Desideri enviou o seu protesto a Roma, ajudando no entanto os correligionários capuchinhos a aclimatarem-se as ásperas condições daquela região. Apesar da boa relação com o italiano, os capuchinhos, temiam que outros jesuítas chegassem entretanto e por isso pediram a expulsão de Desideri. Assim, em Janeiro de 1721 o jesuíta recebe ordens para deixar o Tibete e retornar à Índia. Após longa estadia em Kuti, na fronteira do Tibete com o Nepal, Hipólito Desideri chega a Agra em 1722. Entretanto, nem ele nem Freyre tomaram conhecimento de qualquer missão jesuíta naquele reino tampão entre os domínios dos imperadores mogóis e os dos imperadores manchus da dinastia Qing. Curiosamente, uns e outros faziam-se rodear por uma distinta plêiade de homens de muito conhecimento e não menos fé e preserverança: os padres jesuítas.
Desideri trabalhou algum tempo em Agra, e posteriormente, em 1726, na região de Karnataka, no Sudoeste da Índia, embarcando um ano depois para a Europa levando consigo o processo de beatificação do padre João de Brito. Natural de Lisboa, este jesuíta, que adoptou o nome local Arul Anandar, seria martirizado em Oriyur, no Tamil Nadu, a 4 de Fevereiro de 1693. É hoje designado pelos católicos indianos como “o São Francisco Xavier português” ou “o São João Baptista da Índia”, e a sua história merece página própria; a seu tempo, aqui, neste mesmo espaço.
Joaquim Magalhães de Castro