MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 41

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 41

Tutores e professores de imperadores

Na edição anterior desta série de apontamentos mencionámos a “Capela dos Padres Santos” do cemitério católico de Agra, também conhecida como “Capela dos Mártires”, já que aí jazem dois missionários (prisioneiros do saque a Hugli) martirizados na prisão. Falamos de Manuel D’Anhaya e Manuel Garcia. Apesar de nos serem apresentados como padres seculares, muito provavelmente estamos perante frades da Ordem de Santo Agostinho, pioneira na evangelização de Bengala. Não se pense porém que tenham passado incólumes pela desbragada borrasca os seus confrades na acção jesuíta… Informa-nos o investigador desta congregação, Ignatius Henry Dugout que em 1633 um certo padre Inácio Fialho “foi cortado com cimitarras”, algures nos domínios do imperador mogol, sem que seja indicado o exacto local ou a data do martírio.

No “Ménologe de la Compagnie de Jésus – Assistance de Portugal”, da autoria do padre Elesban de Guilhermy, é-nos retratado um Inácio Fialho “sem medo da morte, segurando o seu crucifixo bem alto”, generosamente exortando os fiéis a sofrerem tudo em vez de negar Jesus Cristo, isto, antes de sucumbir “trespassado por várias estocadas de espada”. O menológio dá-nos conta ainda da circuncisão forçada de centenas de neófitos e dos muitos missionários lançados na prisão, onde seriam cruelmente maltratados. Surge mencionado, por exemplo, o padre Joseph de Castro, açoitado por quatro carrascos que repetidamente o golpearam nas solas dos pés e no rosto, até que o seu corpo não fosse mais “do que uma ferida aberta”.

Recorda o reverendo Henri Hosten (autor do livrinho “Jesuit Missionaries in Northern India and Inscriptions on Their Tombs, Agra, 1580-1803”, que tem vindo a servir de guia a estes escritos) que um mercador arménio, bastante influente na Corte, e um cavalheiro veneziano, de seu nome Jerome Vereneo, não pouparam esforços para resgatar alguns dos prisioneiros de Hugli, tendo inclusive um certo “Shah Alau-d-din intercedido junto de Asaf Jah”, famoso general e governador do Decão, para tentar a libertação de alguns deles.

Pouco nos pode dizer o clérigo belga acerca da carreira missionária do padre Francis Lanfranki (a quem Hosten erradamente atribui a nacionalidade portuguesa), “saído de Lisboa em 1632”, e não tem qualquer problema em admitir a sua total ignorância quanto ao percurso do misterioso padre Anthony da Fonseca.

No que concerne ao padre Thomas de Barros – e graças aos estudos do Abbe A. Launay, das Missions Étrangères de Paris – sabemos que foi enviado ao Tibete em 1640, e por posterior investigação do académico Carlos Sommervogel, sabemos também que ocupou durante algum tempo o cargo de Superior das Missões do Mogor e do Tibete, assumindo as rédeas da reitoria de Damão, Baçaim e Goa. Morreria nesse enclave, mais exactamente em Rachol, a 13 de Abril de 1658. O inestimável trabalho de Sommervogel, autor da monumental “Biblioteca da Companhia de Jesus”, permite-nos obter detalhes acerca do padre Francisco Morando, “um bolonhês e grande erudito na língua persa e hindustani”, residente em Agra e que terá traduzido os Evangelhos para a língua persa.

Graças às “Cartas Ânuas” de 1650 inteiramo-nos do interesse do rei de Srinagar (região do Garhwal) em ter no seu reino “os padres de Agra”, e esse mesmo precioso repositório documental dá-nos conta da autorização concedida ao padre Stanislas Malpica, por volta de 1648, para a construção de uma igreja nos domínios reais. O padre Malpica consta na lista dos missionários enviados ao Tibete, embora nunca lá tenha chegado. Ficou-se pelas belas e dramáticas paisagens do Garhwal, nos contrafortes dos Himalaias. De acordo com as investigações de Frederic Fanthome, Stanislas Malpica exerceu durante algum tempo as funções de tutor do príncipe Dara Shikoh, o filho mais velho de Shah Jahan. Um facto, de resto, confirmado no seguinte trecho do viajante Niccolao Manucci, autor da “Storia do Mogor”: “Os padres na corte do príncipe Dará eram três (anos 1656-58). O primeiro, o padre Estanislas Malpica, um napolitano; o segundo, Pedro Juzarte, português, e o terceiro, Henrique Buzeo [Busi], flamengo. Este último era o favorito do príncipe; cada vez que ia à corte recebia cinquenta rupias e dois xailes”.

A respeito do português, diz Henri Hosten que após 43 anos no Oriente, “um longo período de úteis prestações em Goa, Agra e Macau”, Pedro Juzarte (ou Zuzarte) passou a velhice em Roma e morreu em Lisboa em 1688. “Apesar das suas súplicas”, acrescenta Hosten, “não conseguiu obter do Rei de Portugal, que o estimava muito, o regresso às Missões Orientais”. Perto do final da sua vida, Juzarte, quase completamente cego, retirou-se dos cargos “preparando-se na oração para a última grande jornada”.

Originário de uma ilustre família de Nimegue, na Flandres, “que forneceu vários dos seus membros à Companhia de Jesus”, Henrique Busi, nascido a 28 de Dezembro de 1613, ingressou nessa ordem em 1632 e partiu para a Índia em 1647. Tendo em conta que durante quatro anos havia ensinado matemática em Lisboa, caber-lhe-ia a didáctica missão de instruir o jovem príncipe Dara, entusiasta das ciências e artes europeias. Manucci menciona Busi em vários ocasiões e dá-nos até detalhes da sua morte, “logo após a morte de Rajah Jay Singh (1667)”, acrescentando que o flamengo teria então 53 anos de idade. Dele traça um perfil bastante lisonjeiro: “Era um homem de grande discernimento, muito culto, comedido nos actos e nas palavras. Alto e corpulento; a sua aparência impunha respeito. Era muito educado, um bom matemático, que resolvia com poucas palavras os problemas mais difíceis”. De tal forma o estimavam na Corte, que o próprio Aurangzeb, aquando de uma viagem a Caxemira, em 1662, optou por tê-lo na sua companhia. Também o viajante François Bernier nos dá o seu testemunho, no caso, realçando as relações cordiais entre o príncipe Dara e o padre Henrique Busi.

“Enquanto Jahangir viveu”, escreve Manucci, “os padres sempre foram respeitados e honrados nesta Corte, e, por isso, alimentaram grandes esperanças no avanço do Cristianismo nestas paragens; porém, todas essas esperanças se goraram, excepto a familiaridade do nosso padre Busi com o príncipe Dara”.

De acordo com o historiador François Catrou, autor da “História da Dinastia Mogul”, Dara morreu proferindo as seguintes palavras: “Maomé arruinou-me, o Filho de Maria me salvará”. Acreditam muitos ter morrido também cristã a sua irmã Jahanara, porém, a inscrição no seu mausoléu perto de Deli desmente em absoluto tal suposição.

Alexandre de Rhodes, que esteve em Surate de 30 de Setembro de 1647 a 3 de Fevereiro de 1648, diz-nos ter encontrado por ali um tal “padre Henry Busce [sic], um flamengo, a caminho de Goa para Agra”.

A existência de um outro Henrique, Henry Uwens, por sinal parente de Henry Busi, tem gerado alguma confusão junto dos investigadores. Nascido também em Nimegue, mas a 23 de Abril de 1618, Uwens ingressou na Companhia a 1 de Outubro de 1634. Os catálogos daquela Província demonstram que em 1641 Henrique Uwens tinha ido para a China; e a partir daí o seu nome desaparece dos registos. Hosten lembra que não consta da “lista dos missionários que embarcaram em Lisboa”, e o seu destino permanece um mistério. Até hoje.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *