MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 39

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 39

Primórdios da missão jesuíta no norte da Índia

Data de 1580 a primeira comitiva cristã enviada a Fatehpur Sikri, a corte do imperador Acbar, no Norte da Índia, e dela constavam os jesuítas Rodolfo Acquaviva, Francisco Henriques e António de Monserrate. Tratava-se de uma missão experimental de carácter provisório que duraria três anos, embora antes disso, provavelmente em finais de 1581, tenha regressado a Goa o padre Henriques e o confrade Monserrate, após ter acompanhado Acbar numa expedição a Cabul, e retornaria à capital do vice-reinado em Abril de 1582 à boleia de uma embaixada mogol, e é nessa Goa Dourada que redige as suas memórias.

Organizada em 1591, a segunda missão da Companhia de Jesus terá como protagonistas os bem menos conhecidos padres Eduardo Leitão e Cristovão de Vega e ainda um incógnito diácono. Empenharam-se estes religiosos na vã tentativa de conversão do próprio Acbar, tendo abandonado tão ambiciosa empreitada um ano depois. O historiador jesuíta belga Henry Hosten (1873-1935) descarta a possibilidade de identificação do desconhecido noviço com o maronita Abraham Georges, “pois o seu nome só aparece em 1592 na lista dos que navegavam de Lisboa para o Oriente”. Seja como for, este sírio nascido em Aleppo e educado em Roma no colégio maronita (em canónica comunhão com o Catolicismo) merece uma pequena nota.

Georges ingressa na Companhia aos dezanove anos e o seu conhecimento dos costumes e línguas orientais garante-lhe desde logo um lugar nas missões daquela parte do mundo. Neste caso, no Malabar e nos domínios do Grande Mogol. Em 1595, disfarçado de mercador arménio, tenta entrar na Etiópia, porém, devido a uma imprudência do jovem abissínio que lhe serve de guia é capturado pelos maometanos da ilha de Massouah e às suas mãos padece em Maio desse mesmo ano, com apenas 32 anos idade.

Como nos lembra Hosten, só em 1595 se deu início no Norte da Índia a “uma missão destinada a levar avante a obra de evangelização por um período ininterrupto de quase duzentos anos”. Pioneiros nessa tarefa, os padres Jerónimo Xavier, sobrinho do “Apóstolo das Índias”, Emanuel Pinheiro, e ainda o irmão leigo Bento de Góis. Em Lahore, sede principal do poder mogol, desempenharão a sua actividade. O mais conhecido deste trio é, sem dúvida, Bento de Góis, cuja odisseia em busca do reino do Cataio é sobejamente conhecida e a respeito dela se debruçaria, através de um romance histórico datado de 1854, o jornalista e historiador açoriano José de Torres.

O padre Emanuel Pinheiro concentra todo o seu esforço junto do “povo chão” em detrimento dos nobres da Corte, se bem que estes, não obstante, nutrissem pelo português o maior respeito e consideração. Em 1600, contará com o apoio do seu par Francisco Corsi, enviado de Goa para o efeito. Este florentino, acompanhado de Jerónimo Xavier, passa depois algum tempo em Agra, “onde aprendeu o persa e o hindi, a língua do país, e por sua capacidade e desejo de aprender logo dominará também o árabe”, estando de regresso a Lahore em 1605. Aquando da embaixada inglesa ao Grande Mogol, em 1616, Corsi – então com cerca de cinquenta anos – é-nos descrito pelo capelão da embaixada Edward Terry, como “um homem de uma vida severa, mas de uma disposição justa e afável”. Também a ele se refere o gaulês François Bernier, “que viveu em estreita intimidade com nossos padres em Agra (1660-1665)”, ao mencionar a seguinte história que lhe contara um maometano, filho de um oficial da Corte: num momento de deboche, chamara o rei um homem religioso de Florença, a quem designava de Padre Atech, “pois era homem impetuoso”, e ordenara-lhe que dissesse tudo o que pudesse contra a Lei de Maomé e a favor da Lei de Cristo, na presença dos mais conceituados cacizes. Como resposta, Corsi lançou o seguinte desafio: que fosse escavada uma cova enorme e dentro dela acesa uma grande fogueira, que ele, “o padre Atech”, estaria pronto a atirar-se a ela com o Evangelho debaixo do braço se o mesmo fizesse um dos cacizes com o Alcorão na mão. E concluía: mostrava-se disposto a abraçar a fé daquele cujo o fogo poupasse. A proposta apanhou todos de surpresa. Ao ver o assustado semblante dos seus cacizes, e apelando à “compaixão que ele tinha do padre florentino”, o imperador tratou de mudar de assunto e deu por concluída a provocação. O mesmo episódio é-nos descrito na “História da Dinastia Mogul” na Índia, do jesuíta François Catrou, só que neste caso temos como herói o padre José de Acosta e como desfecho o facto de “desde então o imperador apenas o designava como Padre Atech, ou seja, ‘Padre do Fogo’”.

A verdade é que durante o reinado de Jahangir, e por acção de Xavier, Pinheiro e Corsi, entre outros, vários príncipes maometanos foram baptizados, como o comprova Sir Thomas Herbert. Menciona num dos seus escritos este viajante e historiador que Khurram, o filho mais velho de Jahangir e futuro imperador Shah Jahan, insistiu junto do progenitor para que uns parentes seus, “os filhos do irmão de Shaw Selym”, fossem baptizados, o que de facto viria a acontecer, em Agra. No fundo, pretendia Shah Jahan afastar toda a possível concorrência e tornar assim mais fácil o seu caminho rumo à sucessão da Coroa. Lembra ainda o inglês terem sido os jesuítas que baptizaram esses jovens príncipes “com os nomes de Filipe, Carlos e Henriques”, os mesmos a baptizar pouco tempo depois a um outro neto de Acbar, “dando-lhe o nome de Don Eduardo”.

A este propósito diz-nos Sir Thomas Roe, embaixador inglês à corte de Jahangir, que os tais príncipes depressa regressaram ao Islão “ao descobrir que não poderiam ter mulheres portuguesas como esposas” – informação bastante improvável, até porque Herbert afirma que Shah Jahan, antes de ascender ao trono, tratou de mandar executar dois desses seus familiares baptizados, “os filhos de Daniyal”.

O poeta e historiador jesuíta Joseph Jouvancy, descreve-nos com deleite o desfile “que serpenteava pelas ruas de Agra, aquando a primeira dessas auspiciosas ocasiões”, ou seja, a conversão do três príncipes. Todos os europeus residentes em Agra, “cerca de sessenta”, portugueses, venezianos, polacos, arménios e ingleses, participaram na função, montados a cavalo e vestidos como orientais em brocado de púrpura e ouro. O capitão William Hawkins estava lá, carregando “a bandeira com São Jorge em honra de Inglaterra”, antecedendo os elefantes brancos que transportavam os jovens príncipes até à igreja dos jesuítas. Consta que antes da cerimónia Jahangir terá perguntado: “O que irá acontecer quando a Índia me ver, a mim também, como um cristão?”.

Jahangir era grande apreciador de pinturas religiosas e com elas decorava alguns dos seus aposentos, graças à influência da sua consorte Juliana Dias da Costa, como já aqui se disse . Uma leitura atenta da “Relaçam” do padre Fernão Guerreiro – chama a atenção Henry Hosten – “convence-nos de ele que mandou pintar cenas de arte cristã nas paredes do seu palácio de Agra”. Tendo em conta que essas pinturas muito provavelmente terão sido cobertas durante o reinado de Shah Jahan, monarca bem menos tolerante, resta-nos a esperança de algum dia, tal como aconteceu com as pinturas cristãs de Fatehpur Sikri, possam ser de novo reveladas, uma vez retirada a camada de cal que as cobre.

Henry Hosten chama ainda atenção para o padre António Machado, natural de Serpa, chegado à Índia em 1586 e que em 1602 terá seguido para Agra para dar apoio a Jerónimo Xavier. Numa carta escrita em Lahore a 4 de Setembro de 1604, Xavier diz que Pinheiro e Corsi se encontravam em Lahore, e ele e Machado em Agra. Em 1613 Machado ocuparia o posto de superior dos jesuítas na Missão Mogol e o seu corpo está sepultado em Agra. Está guardada no Museu Britânico, datada de 9 de Abril de 1615, uma carta inédita de Machado, traduzida para Inglês, informando o Superior da Companhia em Roma do encerramento das igrejas “no reino de Mogor” por ordem do imperador Jahangir.

Outro missionário que parece ter estado ligado à missão no Grande Mogol, no seu estágio inicial, é o padre Francisco Cabral. Sobre ele escreveu o padre Pinheiro numa carta enviada de Lahore em 1605: “Ficaria feliz se Vossa Reverência pudesse fazer chegar esta missiva ao padre Francisco Cabral, que por todo o trabalho aqui efectuado bem pode ser chamado de fundador desta Missão”. Mas, salvo esta alusão, nada se sabe acerca da sua estada no Norte da Índia. Cabral morreu em Goa em 6 de Abril de 1609, após uma notável carreira no Japão.

Joaquim Magalhães de Castro

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