Vasto manancial de gramáticas, dicionários, catecismos e manuais de confissão
Ao contrário do que vão papagueando as enciclopédias anglo-saxónicocêntricas e as plataformas audiovisuais idem aspas aspas ou aquilo que se vai repetindo “ad aeternum” nas palestras, conferências e simpósios da especialidade, também no domínio da filologia cabe aos portugueses o pioneirismo. Foram os primeiros ocidentais a estudar e a divulgar os idiomas orientais – no caso da Índia, a aperceberem-se das semelhanças entre o Hindi, o Bengali, o Gujarati, etc., e as línguas europeias –, escrevendo minuciosamente sobre o assunto, e isto, muitas décadas antes de terem pisado tão movediço terreno os filólogos e linguistas ingleses, franceses e alemães a quem hoje são atribuídos os créditos da façanha. E tudo isto acontece, uma vez mais, por culpa nossa, distracção nossa, inércia nossa.
Décadas e décadas de escassez (ou ausência até) de trabalho de campo ou de rato de biblioteca, ou de um e outro simultaneamente, e as provas do nosso vanguardismo, nesse e em tantos outros domínios, lá continuaram adormecidas nas gavetas mais fundas dos arquivos nacionais e estrangeiros… Como escrevia há tempos o investigador José Carlos Calazans, que na Biblioteca Pública Eborense tem vasculhado, “por muito que custe aos apaixonados do poder anglo-saxónico, terão que aceitar o facto de terem sido os portugueses os primeiros a chegar à Índia, os primeiros a dar a volta à Terra e os primeiros a terem descoberto as semelhanças entre o Sânscrito, o Grego e o Latim”.
E fizeram-no, tão só, por uma questão prática. Havia que buscar suficientes e poderosas ferramentas para eficiente evangelização. Trataram, missionários das diferentes ordens ao serviço do Padroado, de implantar uma vasta rede escolar nas diferentes geografias do subcontinente onde passaram a ser ministradas aulas de Latim, Grego clássico e de Português. Por outro lado, a necessidade de comunicar com os autóctones, potenciais futuros neófitos, levou-os a aprender as línguas vernaculares; e tal empenho puserem na ciclópica operação que em pouco tempo estavam a redigir gramáticas e dicionários que ainda hoje pasmam os académicos dessas regiões, pelo seu rigor, dimensão e abrangência lexical. Além dos linguajares do povo, aplicaram-se também os nossos padres na aprendizagem dos textos clássicos. Urgia saber esgrimir argumentos teológicos e filosóficos com os seus pares de outras religiões; o nível exigido, no mínimo, o do escolástico medieval, o que não é coisa pouca. E foi assim que se impuseram, merecendo o respeito e admiração de rajás, sultões, reis e imperadores que os tinham como assessores, professores e até confidentes e amigos.
Desde o início do século XVI assistiu-se na costa do Malabar à produção de inusitada quantidade de gramáticas e dicionários das línguas locais, com o Colégio de São Paulo de Goa como principal polo onde irão ingressar alunos de todas as partes da Ásia e até da África Oriental. “Desta forma”, escreve Calazans, “quer oralmente quer na escrita, a língua de Camões, o Concani e o Malayalam foram ensinados e tornaram-se instrumentos de diálogo entre culturas diferentes”. Estratégia bem definida a dos homens da Companhia de Jesus: punham a estudar nas suas escolas e colégios os jovens convertidos e obrigavam os missionários recém chegados da Europa a aprender os idiomas locais.
Convém salientar que eram manuscritas essas primeiras gramáticas, compêndios, catecismos e manuais de confissão, “copiados em número suficiente para suprir as necessidades da missionação” e só após 1556, com a introdução da primeira impressora, importante inovação disponibilizada pelos jesuítas, se disseminou todo esse material. Curiosamente, a primeira língua não europeia a aparecer impressa foi o Tamil graças à tradução do “Doutrina Christam em Lingua Malauar Tamul”, da autoria de Henrique Henriques. A urgência do uso deste idioma explica-se pelo intenso labor missionário junto da comunidade de pescadores de Parava na costa de Coromandel iniciado pelos padres Francisco Xavier, Henrique Henriques e Baltazar da Costa. Uma segunda edição seria impressa em Coulão, em 1578, seguida de um novo catecismo, “Kiricittiani Vanakkam” (Cochim, 1579), um manual para confissão, “Kompessionaiyru” (Cochim, 1580), e uma biografia de santos, “Flos Sanctorum” (Cochim, 1586). Quase um século depois, em 1679, surgirá o primeiro dicionário bilingue Tâmil-Português, compilado pelo jesuíta Antão de Proença e impresso em Ambalacatta, actual Ambazhakad.
Ressalve-se, porém, que a maioria dos dicionários e gramáticas manuscritas compostas e copiadas a partir do século XVI nunca chegaram a ser estampadas: foi o caso do “Vocabulario lusitano tamulico e chingalatico”, de Jacome Gonçalves (1676-1742); as listas de palavras em idioma télugo compostas por jesuítas; o “Breve compendio da Grammatica Bengala, no Vocabulario em Idioma Bengalla e Portuguez” (1743), escrito por Manuel da Assumpção; e a anónima “Gramatica indostana a mais vulgar que se practica no Imperio do gram Mogol”, juntamente com outras listas de palavras bengalis e hindus revelada pelos ingleses no segunda metade do século XVIII.
Para além dos dicionários Tâmil-Português ou Português-Tâmil, hoje disponíveis em Goa na Biblioteca Central do Estado ou em Paris, podemos citar ainda os exemplos da “Arte Canarina na lingoa do Norte” (século XVII), composta por um franciscano ou um jesuíta e impressa pela primeira vez em Nova Goa em 1858; a “Grammatica ou Observações Grammaticaes sobre a lingua de Concana”, da possível autoria do carmelita italiano Francisco Xavier (ou Xaver); a referida “Gramatica indostana a mais vulgar que se practica no Imperio do gram Mogol”, ou ainda a “Gramatica marastta a mais vulgar que se practica nos reinos do Nizamaxà e Idalxà”.
José Carlos Calazans, por sua vez, chama a atenção para o “laboratório cultural e linguístico dos séculos XVI-XVII” vivente na Biblioteca Pública Eborense. Dois manuscritos portugueses merecem a sua atenção: No primeiro, “Notiçia Sumaria do Gentilismo da Azia”, são descritas “as oito reencarnações de Vishnu, incluindo onze desenhos coloridos e em perfeito estado de conservação”. Esta obra anónima do início do século XVII, “copiado depois da saída de Goa dos padres da Companhia em 1759, segue de perto em língua portuguesa o clássico hindu Bhgavatam”. Calazans chama atenção para o facto de “não existir no Notiçia Sumaria qualquer comentário pejorativo ou crítico ao longo de toda a obra, tendo deixado o conteúdo religioso intacto; num dos capítulos consegue-se vislumbrar, até, um certo respeito e equidade quando o tradutor descreve a divindade revelada pelos hindus, provavelmente revendo-se nela através de um patente monoteísmo: ‘Hum só Deos verdadeiro, e Eterno denomina o Gentilismo por dous Nomes a saber Ananta (omnipotente), e Adi Puruxa (Eterno Homem) hé prefeito dos mais prefeitos, a sua fermozura naõ vem a comprehençaõ humana; creou a sua imagem e semelhança os homens; adora lhe o Gentilismo por milhares dos nomes, e a primeira oraçaõ, hé a que se segue em próprias palavras da Língua Sauanscruta, que entre os gentios hé a como Latim’”.
O segundo manuscrito, “Tradução em summa do Livro, que os Gentios chamão Bagavata Guita”, de um anónimo padre jesuíta, é provavelmente a primeira tradução ocidental do mais famoso livro do Hinduísmo. Uma tradução “que tenta seguir o original verso a verso”, mantendo a integridade do texto dos dezoito capítulos que compõem a versão sânscrita.
Tendo em conta “o rigor linguístico e pedagógico com que os missionários portugueses trabalharam na Índia”, o facto do Colégio de São Paulo de Goa ser a melhor escola de línguas de toda Ásia e a existência de todo um rol de obras manuscritas ou impressas que servem de comprovativo desse extraordinário trabalho intelectual, estranha o professor Calazans (e estranhamos todos nós) que se continue a afirmar ter sido Sir William Jones (1746-1794), juiz Supremo do Tribunal de Calcutá, o primeiro europeu “a detectar as semelhanças entre o sânscrito e o grego clássico, quando já meio século antes (pelos menos) os missionários portugueses traduziam do malayalam e do sânscrito para o português de Setecentos”.
Joaquim Magalhães de Castro