MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 37

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 37

Frei Manuel de Assumpção, gramático, lexicólogo e prosador do idioma bengali

Se no reino do Butão a todas as crianças da escola primária é-lhes relatada a aventura dos jesuítas João Cabral e Estêvão Cacela, realçando o seu pioneirismo e mergulho na cultura local, igual pedagogia é posta em prática a sul, nas planícies hindustânicas, no que diz respeito à primeira gramática/dicionário de Bengali e ao seu autor, o padre Manuel de Assumpção, frade agostinho, alentejano de Évora. Isto o afirma o reputado investigador Mahmood Shah Qureshi, questionando, desde logo, a razão de se dever tal iniciativa a um missionário ocidental e não a um académico bengali, como seria natural.

Pelos vistos, os escritores e poetas locais da época, século XVIII, estavam inteiramente devotados ao estudo e descodificação do Sânscrito. Até o reputado poeta muçulmano Alaol, em vez de se focar nos textos árabes, o mais expectável, especializar-se-ia nos clássicos do Sânscrito.

Intitulada “Vocabulario em idioma Bengalla e Portuguez”, dividida em duas partes, a obra de Assumpção, dedicada ao arcebispo de Évora, D. Miguel de Távora, a quem o frade deve a publicação, em 1743, incluía um breve compêndio da gramática bengali. Estamos a falar de uma obra com 592 páginas que em 1931 seria reimpressa, fac-símile, a partir do Português original, com tradução para Bengali, anotações e devida introdução do linguista e literato Suniti Kumar Chatterjee. Admitiria publicamente este académico – a quem o laureado Rabindranath Tagore atribuiu o honroso título de “mestre de idiomas” – a imensa dificuldade de levar a cabo a totalidade da tarefa, pelo que o trabalho ficaria incompleto, sobretudo no que concerne ao dicionário. Apesar de anteriormente analisado por dois orientalistas ingleses, e ainda, em 1903, merecer uma simples menção de George Grierson, filólogo e administrador da Companhia das Índias Orientais, apenas Chatterjee teve a iniciativa de ir para frente com esse ciclópico trabalho, em 1922, dias e dias sentado numa das salas do Museu Britânico (hoje Biblioteca Britânica), “com a ajuda de Priyaranjan Sen, um colega que tinha algum conhecimento de Português e Francês”, pois Chatterjee sabia apenas Francês e Latim, para que depois a Universidade de Calcutá o pudesse publicar. Ora, volvidos 84 anos, a necessidade de uma edição completa do “Vocabulário” levaria Mahmood Qureshi a decidir concluir o trabalho iniciado por Chatterjee. Com esse intuito deslocar-se-ia ao Reino Unido, onde examinou as duas cópias do “Vocabulário” existentes na British Library, e a Portugal, onde deparou com o manuscrito original e a primeira impressão, valioso espólio da Biblioteca Pública de Évora.

Torna-se por demais evidente, ao analisarmos a obra do nosso agostinho, que os dois primeiros dicionários bilíngues, Francês-Bengali, de Augustin Aussant (1785), e um vocabulário em duas partes, Inglês-Bengali e Bengali-Inglês (1799, 1802), de Henry Pitts Forster, têm como base o trabalho pioneiro de Manuel de Assumpção.

Além de gramático e lexicólogo, Manuel de Assumpção foi também prosador. Aliás, a ele se deve o início da tradição de redigir textos em prosa em Bengali, já que na altura estavam por definir as normas dessa arte e tudo o que havia para recordar o passado resumia-se, como dizia o professor Suniti Kumar Chatterjee, a “algumas cartas e documentos referentes a negócios e propriedades”. Serve de comprovativo da proeza, um livro em prosa publicado em Lisboa em 1743. Redigido em caracteres latinos, pois o alfabeto bengali ainda não estava disponível para a imprensa, o conteúdo da obra bilingue “Crepar Xastrer Orthbhed/Cathecismo da Doutrina Christãa” (Bengali/Português), escrito em 1735 na região de Bhawal, actual Bangladesh, também conhecido como “Compendio dos Mistérios da Fee” apresenta-se na forma de um diálogo mantido entre um católico e um brâmane, e segundo o autor pretendia mostrar “na lingua bengalla a falsidade da seita dos gentios, e verdade infallivel da nossa Sancta Fé Catholica, em que só ha o caminho da Salvação e o conhecimento da verdadeira Ley de Deos”. Chatterjee, nos comentários a seu respeito confere ao autor “um lugar de excelência como gramático e lexicógrafo”, louvando a excelência do estilo e da linguagem, “malgrado a inexistência de qualquer modelo anterior”.

Podemos afirmar, sem correr o risco de exagerar, que se deve a Manuel de Assumpção o dealbar de uma tradição literária local que atingirá o expoente máximo com Rabindranath Tagore, o primeiro escritor asiático a ser distinguido com o Nobel da Literatura. Não é por caso que a literatura bengali é apontada como sendo uma das primeiras a utilizar “um estilo ocidental”.

Convém lembrar, por uma questão de justiça, que antes de Assumpção, desde os derradeiros anos do século XVI até ao final do século seguinte, diversos padres jesuítas – Marcos Antonio Santucci, Domingos de Souza, Inácio Gomes, Manuel Saraiva – parecem ter recorrido à prosa em Bengali para fins de propaganda missionária; porém, toda ela era escrita à mão e acabaria por se perder ou ficar esquecida, posto jamais ter sido tomada qualquer iniciativa no sentido de uma duradoura impressão. “Ganhou” com isso Frei Assumpção, graças aos favores do arcebispo de Évora… Entre as figuras esquecidas, saliente-se a de D. Antonio de Rozario, um príncipe hindu local convertido pelos portugueses, autor do “Brahman-Roman Catholic Sambad”, obra na qual um católico dialoga com um Brâmane e tenta mostrar a superioridade do Cristianismo sobre o Hinduísmo.

Pouco se sabe da vida de Manuel de Assumpção antes da sua chegada a Nagori-Bahawalpur, então Bengala Oriental, hoje Bangladesh, em 1695, como “Religioso Eremita de Santo Agostinho da Congregação da Índia Oriental”, passando pouco depois a “Reitor da Missão de São Nicolau de Tolentino” de Nagori, uma das quinze missões religiosas portuguesas existentes em Bengala, talvez das mais importantes. Dela resta uma bela igreja, fundada em 1663, em urgente necessidade de reabilitação, como, de resto, já aqui tivemos oportunidade de alertar.

Nagori é um local marcado por diversas actividades educacionais e religiosas, dispondo de uma escola, fundada em 1920, e de uma nova igreja, estreada em 2012. Interessa-nos, neste caso, o local onde o padre Manuel trabalhou na composição da gramática e do dicionário, na realidade, um novo edifício construído, “com base no modelo anterior” no exacto local do original que, desgraçadamente, foi demolido.

A retoma do trabalho encetada por Mahmood Qureshi gerou de imediato grande dinâmica em torno da matéria, com Abdur Rahim Khondkar, seu congénere universitário, a elaborar uma dissertação intitulada “The Portuguese Contribution to Bengali Prose, Grammar and Lexicography”, editada em 1977 pela Bengali Academy, Daca, e o professor M.A. Qayyum, respeitado colega sénior, com um extenso estudo sobre os primórdios da gramática bengali, publicado em 1982 pela Asiatic Society of Bangladesh. Este último, na sequência de um trabalho comparativo da obra de Assumpção com a do gramático inglês Nathaniel Brassey Halhed (1751-1830), observa com ironia: “Se Halhed se tivesse dado ao trabalho de estudar o ‘Vocabulário’ com a ajuda de um intérprete, poderia, acreditamos, ter melhorado significativamente, e de várias formas, a gramática que nos deixou”. E aponta quatro casos específicos. Primeiro, “o ‘Vocabulário’ distingue claramente a terceira pessoa honorífica (tini, ini, uni) das formas não honoríficas (se, e, o)”. Em segundo lugar, “o ‘Vocabulário’ apresenta declinações nominais e pronominais completas e precisas…”. Em terceiro lugar, “o verbo ‘estar’ no ‘Vocabulário’ é conjugado correctamente”. Em quarto lugar, “o Vocabulário está bem ciente da existência do imperativo futuro”. Todos estes aspectos, e muito outros, estão omissos na obra de Halhed, tornando-a redundante pois nada de novo acrescenta.

Outra das novidades nas obras de Manuel de Assumpção, no “Vocabulário” e, sobretudo, no “Crepar Xastrer Orthbhed”, é a presença de frases e vocábulos do antigo dialecto de Bengala Oriental, quase com trezentos anos, ainda hoje falado na área de Bahawalpur, perto de Daca, a uns trinta quilómetros ao norte de Narayanganj.

A especialidade linguística de Manuel de Assumpção abre um capítulo sobre a literatura cristã em Bengala que começa com a transliteração específica em letras romanas para Bengali e que com o correr dos séculos deixou um rasto em forma de centenas de palavras portuguesas usadas ainda hoje no dia-a-dia dos naturais, certificando a seguinte afirmação de Muhammad Enamul Haque, pesquisador, literato e educador bangladeshi: “A influência portuguesa na cultura bengali é profunda e está presente em todos os domínios da sociedade”.

Joaquim Magalhães de Castro

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