O poeta, a harpa e o legado dos Derozianos
Como nos recorda o sociólogo Roy Dean Wright, “a década de 1830, altura em que Derozio escreveu as suas principais obras, foi uma década de grandes mudanças em todo o mundo”. Quatro instituições fundamentais surgem então nos Estados Unidos: o presídio, “local para onde alguém pode ser enviado como forma de punição”; a quinta, “local onde os pobres podem angariar o sustento básico”; a instituição juvenil, “local para enviar os jovens que necessitam de ser reabilitados”; e a instituição mental, “o local para onde aqueles que a sociedade considera ‘loucos’ são enviados”. Como sumariza o norte-americano: “Essas instituições assinalam grandes mudanças na natureza da sociedade (…) de como governo e a sociedade passam a lidar com os seus cidadãos e, finalmente, como a sociedade passa a encarar o papel do indivíduo e o seu relacionamento com a comunidade”.
É justo lembrar que as ideias de Derozio tiveram profunda influência num movimento social conhecido como “Renascimento de Bengala”, no início do século XIX, e a sua actividade política foi de importância crucial para o desenvolvimento da esfera pública em Calcutá durante o imperialismo britânico. Muitos foram os tributos prestados a esta figura ímpar de Bengala, sendo a mais recente, a 15 de Dezembro de 2009, a emissão de um selo comemorativo.
Embora o considerassem iconoclasta, Alexander Duff e outros missionários cristãos (maioritariamente evangélicos), o espírito racional que caracterizava Derozio levava a que parcialmente o aceitassem, desde que não entrasse em conflito com os princípios básicos do Cristianismo e se mantivesse crítico em relação ao Hinduísmo ortodoxo. Acredita-se que Derozio tenha tido algum papel na conversão ao Cristianismo de hindus de casta alta como Krishna Mohan Banerjee e Lal Behari Dey, embora o escritor Samaren Roy nos garanta que ele não teve qualquer responsabilidade na conversão ao Cristianismo de três dos seus alunos hindus. Lembra ainda Roy que a demissão de Derozio do Hindu College foi solicitada “não apenas por hindus, como Ramkamal Sen, mas também por cristãos como H. Wilson”.
Apesar da sua curta vida, Henry produziu importantes obras poéticas e tinha tudo para vir a tornar-se numa das principais lendas literárias da Índia. Influenciado pela poesia romântica, sobretudo o orientalismo de Byron e de Southey, Derozio é considerado “o primeiro poeta da Índia moderna” e a sua obra “um marco patriótico”, em particular as odes “To India – My Native Land” e “The Fakeer of Jungheera”. A respeito desta última, Edward Thomas – estudioso da obra de Derozio – escreveu, em meados do século XIX, o seguinte: “Hoje, em Bhaugulpor, ninguém o conhece (…) Frequentemente visitava uma tia casada, e ali, sentado junto ao rio, o então menino Derozio, viu um faquir”, a sua primeira motivação inspiracional.
Uma placa de mármore na parede da guarita do porteiro junto ao portão principal de uma casa antiga numa das ruas mais movimentadas de Calcutá informa, em Bengali, que ali morou Derozio, “o maior dos professores, pioneiro do racionalismo e incansável lutador contra a prática da queima de viúvas”. Não há, porém, qualquer menção à sua faceta de trovador… Na verdade, muitos dos poemas deste indo-anglo-português foram escritos na sequência (ou como complemento) de acaloradas intervenções públicas.
Atenta análise àquilo que escreveu revela-nos muito do que se ia passando na Índia do início do século XIX; ademais, o estilo de alguns desses poemas, dos mais notáveis, escritos um ano antes da sua morte, remete-nos para os haikus japoneses; isto, cem anos antes do controverso norte-americano Ezra Pound aplicar semelhante receita na Inglaterra modernista. “Beleza”, “Luto”, “Medos”, “Voz suave”, “Semblante inteligente”… Cinco poemas, breves, na forma e conteúdo. Eis uma definição de beleza: “Os olhos dela / Nadam na luz do seu próprio intelecto / E adquirem o brilho dos seus pensamentos sem pecado”. “Harpa da Índia”, um dos poemas mais emblemáticos de Derozio é, à primeira vista, uma qualquer ode com catorze linhas, embora o uso dos termos “harpa” e “Índia” nos leve a querer aprofundar o seu conteúdo. Como sabemos, a harpa é um instrumento musical bastante comum na Irlanda, pelo menos de há dois ou três séculos a esta parte; falta saber o que fazia ela num país colonizado como a Índia… Talvez a origem indo-portuguesa de Derozio nos possa ajudar a encontrar uma resposta.
A referência à “Índia” poderá indicar que Henry não só a encarava como seu país de origem, mas também se preocupava com o estado em que se encontrava sob o domínio colonial, na esperança de que a música tradicional fosse reabilitada e com ela a dignidade e glória de outrora. Lembre-se que a harpa foi um dos primeiros instrumentos musicais do povo tâmil (cerca de duzentos anos antes de Cristo), como o documenta a literatura desse povo. A presença da harpa nas manifestações culturais da região de Bengala está patente em inúmeros baixos relevos de templos datados de antes de 500 depois de Cristo, embora não se saiba se Derozio tinha conhecimento de tal realidade. Seguindo esta linha de pensamento, podemos deduzir que ele recorreu ao poema “Harpa da Índia” para retratar o rico e variado leque de culturas e tradições da Índia, ambas debaixo do jugo do raj britânico. Este legítimo sentir parece transparecer no verso “tua música era doce /quem a ouve agora?”. Na verdade, o sistema colonial amordaçava toda a herança nativa, da qual a música era parte integrante. Outras especulações se poderão fazer quanto à escolha desse elemento metafórico em detrimento de qualquer outro, mas não passarão disso mesmo. Por exemplo: a harpa era instrumento musical de monta no país de origem do pai de Derozio, ou seja, Portugal, pois usavam-nos os presbíteros nas igrejas e cerimónias religiosas e leigos vários nas demonstrações de oratória e até nas festas populares, como o demonstra o exemplar exibido num museu de Lisboa semelhante a um folk harp tirolês, “instrumento simples e agradável com rosetas finas na mesa de som”, datado do século XVIII. Era então popular, desde o século XVI, a harpa inventada por Juan López de Toledo, numa época em que o harpista era simultaneamente organista… Ainda hoje esse instrumento é tocado na América Latina (sobretudo no Paraguai), onde foi introduzido no século XVI por jesuítas portugueses e espanhóis.
Tendo em conta a origem lusitana de Henry Derozio, é bem possível que a metáfora “harpa” represente um regresso às suas raízes. Durante a disseminação do Islamismo, ao longo do século VIII, a harpa viajou do Norte de África até à Península Ibérica e daí se espalhou por toda a Europa. Por volta de 1720, Celestin Hochbrücker acrescentou-lhe pedais, um desenvolvimento muito importante para este instrumento que viria ainda a ser mais aperfeiçoado pelo francês Érard em 1810. A intensidade do sentimento expresso em “The Harp of India” e a firme convicção do poeta de que a sua Índia um dia recuperaria a glória passada, deixam os leitores em dúvida se subsistiria no poeta Henry Louis Vivian Derozio algum vestígio de lusitanidade além do seu apelido… Nessa época, os britânicos não só tinham colonizado fisicamente a Índia, como tinham neutralizado as capacidades mentais dos nativos, algemando o seu pensamento e a sua arte. Esta situação é adequadamente retratada por Derozio na seguinte linha de abertura, pois muitas das vezes as perguntas eram pensadas, mas nunca expressadas, devido ao medo: “Why hang’st thou lonely on yon withered bough?” (“Por que permaneces sozinho no galho seco?”). Numa única linha temos retratada a psique do indígena, física e mentalmente dominado pelo colono da Velha Albion.
Joaquim Magalhães de Castro