MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 25

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 25

De capitães de navios a fabricantes de velas

Depois de nos descrever os feringhees da região de Bengala, o escriba da Calcutta Reviewaborda a vida profissional dizendo-nos que grande número deles seguia o ofício dos seus antepassados, “homens ligados ao mar”, e que as perdas de vida resultantes de naufrágios era (ainda e sempre) a principal causa da diminuição do seu contingente. Segundo ele, existiriam dois tipos de feringhees, “graus reconhecidos entre os próprios”, sendo o mais alto composto pelos construtores de barcos e capitães, e o mais baixo por fabricantes de velas, topasses, entre outros. Isto, no que se refere à orla costeira, pois no interior predominavam, por razões óbvias, os agricultores; mas havia-os também respeitados conselheiros e árbitros de disputas alheias; os escândalos domésticos, por exemplo, eram resolvidos por um conselho de anciãos, organismo gerador de consensos, em consonância com o Catolicismo professado. Estava, porém, o credo local impregnado de elementos animistas, fruto da longa relação com os nativos e que o repórter da Calcutta Reviewconsidera “padrão um pouco degradado”.

Ora, com contacto assim tão próximo inevitável era que alguns dos costumes nativos passassem a ser adoptados pelos feringhees. Sete dias após o nascimento de uma criança – para citar um exemplo – os amigos da família, incluindo o padrinho e a madrinha, juntavam-se para efectuar a “shatuara”, cerimonial assinalado por um candelabro com cinco ramos colocado numa mesa decorada com flores, conchas e moedas de ouro e prata, perto da cama da mãe e do filho. Ali reunidos, vários patronos nomeavam cada uma dessas velas, assinavam-nas e, ao anoitecer, acendiam-nas; aquela em que a luz mais intensamente brilhasse era a seleccionada para atribuir o nome à criança, que seria oficialmente baptizada no dia seguinte; eram-lhe depois oferecidos presentes e gastava-se o resto da noite em rija festança. Aos padrinhos competia-lhes, doravante, presentear o afilhado todos os anos: pelo Natal, Ano Novo e Sexta-feira Santa. Ao vigésimo primeiro dia de vida, quando o infante era colocado pela primeira vez num berço devidamente consagrado, nova festarola tinha lugar; também a perfuração dos lóbulos das orelhas das meninas, feita em tenra idade, era cerimónia de alguma importância. No dia marcado vestia-se de “noiba” (noiva) a candidata e furavam-se ambas as orelhas com agulha e linha, antes do banho ritual. Encerrava o dia, como de costume, um animado banquete. Cerimónia semelhante ocorria quando um rapaz se sentava pela primeira vez na cadeira de um barbeiro… Na verdade, entre os feringhees todos os pretextos eram bons para o exercício do convívio!

As mulheres mantinham sempre o nome do pai, mesmo após o casamento, e aquando a sua morte aquele era gravado na lápide tumular. Atribuíam considerável importância ao casamento estes nossos feringhees, e histórias curiosas são contadas acerca das querelas e dos ciúmes e das medidas adoptadas para evitar uns e outras. Poucos eram os erros que não pudessem ser expiados por criteriosa e bem regada comezaina, onde a bebida brotava sempre em generosas doses. O britânico escriba da Calcutta Reviewacusa os feringhees de tratarem as esposas “com grande dureza”, pois “entre eles os actos de bondade são interpretados como sinal de fraqueza”. Sempre que morria alguém o cadáver era lavado, vestido e colocado numa mesa com velas acesas nos quatro cantos, sendo depois perfumado. Celebrado o culto, o corpo era levado numa procissão encabeçada por uma grande cruz de prata e castiçais de prata com velas acesas. Na igreja, mais orações e muito incenso, consagrando-se o corpo com água benta antes de descer à terra. O luto no sétimo dia era assinalado com um grande banquete, havendo cerimónias alusivas ao ente desparecido no primeiro, terceiro, sexto e décimo segundo meses após o seu falecimento.

Depois de falar da morte, o expatriado jornalista volta-nos a falar da vida, mormente as observâncias habituais no momento do parto. Diz-nos o incógnito escriba que a mulher feringhee, assistida por parturientes muçulmanas, dava à luz na posição sentada. Assim que a criança nascia, a mãe era obrigada a engolir “uma onça de óleo de mostarda aromatizada com pimenta”. Encostava-se depois à parede, “enquanto a parteira lhe esfregava o abdómen com folhas de manga”; depois disso, era banhada e podia, enfim, deitar-se na cama. Selavam-se cuidadosamente todas as fendas da sala e acendia-se uma grande fogueira perto da cama; e assim, “meio sufocada pela fumaça e o calor, a infeliz criatura era coberta com um cataplasma de especiarias quentes”. Garante o inglês que “num aspecto apenas” a mulher feringhee levava vantagem “sobre as suas irmãs muçulmanas”: durante o período de gestação e no pós-parto eram tratadas “com moderação e até gentileza”.

Não ignora a peça da Calcutta Reviewos vestígios do idioma de Luís Vaz no linguajar do País. E apresenta a seguinte lista: chábi, chave; kobi, repolho; girjá, igreja; padrí, padre; fitah, fita; sáyah, saia; almári, armário; martaul, martelo; maskabád(?), termo náutico explicado nos dicionários; casta, raça; Natal; Anno Nuevo, Ano Novo; Quaresma; Seixta fera major, Sexta-feira Santa; geanto, jantar; ceon, ceia; almuso, pequeno-almoço; bon matino, bom dia; bon noite, boa noite; bon midia, meio-dia; mou-i-to mercier, muito obrigado; queianda, cunhada; queindo, cunhado; phillado, afilhado; phillada, afilhada; padrino, padrinho; madrina, madrinha; compadra, compadre; commadre, comadre; etc.

Como bom inglês, o cronista da Calcutta Reviewnão deixa de tecer algumas considerações de carácter racial, não isentas de forte preconceito, como era esperado. Diz que os feringhees se aproximavam mais dos autóctones do que os “típicos euro-asiáticos”; e, à semelhança “dos piores de entre estes últimos”, faltava-lhes “energia anímica e ambição”. Contavam sempre mais “com a assistência dos outros” do que com a sua própria capacidade. O autor não encontra casos de excelência entre os feringhees, e no que diz respeito à actividade empresarial garante que levavam larga vantagem os comerciantes maometanos. Permanecia naqueles, no entanto, “o orgulho da raça”, como os antigos coríntios mencionados por Cícero, “animis diuturna cogitatio callum vetustatis obduxerat”. Desprezavam os locais mas não de forma tão sobranceira como os restantes euro-asiáticos, “pois a preponderância do sangue nativo nas suas veias e a semelhança de hábitos coloca-os mais próximos dos locais do que dos europeus”. O nativo, esse, provocava-os, classificando-os de meros “matti feringhees” (europeus cor da terra) ou “kala feringhees”(europeus escuros), e não se consideravam inferiores a eles. Por negligência – no que se refere ao aspecto educativo – os feringhees permitiram que os muçulmanos e os hindus, “por natureza mais empreendedores”, os ultrapassassem “na corrida da vida”. Desde 1836, aquando o estabelecimento de uma escola governamental em Chatigão, os cargos e nomeações outrora monopólio dos feringhees passaram a ser ocupados por muçulmanos, privando os primeiros da sua principal fonte de independência. A “inércia da sua natureza”, no dizer do arrogante britânico, “impedira-os de se esforçar” para melhorar a sua condição e agora “lamentam gravemente o destino que reduziu um De Barros ou um Gonsalves a ganhar pelo trabalho manual” uma miserável ninharia, o equivalente “ao salário de um trabalhador comum”.

Para o inglês, esta negligência geral na educação deveu-se à fraca qualidade dos padres enviados de Goa, “mestiços, conhecidos pelas suas superstições, ignorância e egoísmo, que desacreditaram os da sua profissão, pois para instruir eram incompetentes”. Durante largos anos, a única forma das crianças obterem educação era através dos seus pais ou de “descendentes de imigrantes espanhóis” que actuavam como professores, mas cujo conhecimento, “se é que possuíam algum”, não era muito profundo.

Em jeito de conclusão, fecha assim o jornalista da Calcutta Review: O declínio da presença portuguesa em Chatigão “foi apenas uma questão de tempo”. Como mercenários de um estado estrangeiro, “satisfeitos com o pagamento regular e com a pilhagem conseguida nas suas incursões e expedições piratáticas, estabelecendo ligações efectivas com as suas escravas, desprovidos da introdução de sangue fresco europeu e, acima de tudo, afastados da saudável opinião pública dos homens do seu país, eles tomaram as melhores medidas para acelerar a desgraça que se anunciava. A anexação da província de Bengala pelos britânicos em 1761 privá-los-ia dos seus salários como soldados e fechar-lhes-ia todas as perspectivas de adquirir riqueza através da sua actividade bucaneira”.

Joaquim Magalhães de Castro

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