MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 18

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 18

O massacre de Dianga

A gradual desintegração da dinastia Hussain Shahi teve como resultado o reforço dos poderes de Arracão e Orissa em toda a zona costeira de Bengala e encorajaria grupos de portugueses, sem qualquer controlo central e sustentados por oportunidades comerciais lucrativas, a servir, como artilheiros e especialistas navais, não só nos poderosos exércitos mogóis e arracaneses mas também nos dos pequenos reinos costeiros hindus semi-autónomos de Sripur, Bakla e Jessore, como nos dão conta as cartas dos padres jesuítas de finais do século XVI e inícios do seguinte. Nelas se referenciam assentamentos como o de Diamond Harbour (Hajipur), onde subsistem, ainda hoje, na localidade de Chagrinkali, também conhecida como Purano Kella, na foz do rio Hooghly, vestígios de um forte construído pelos rebeldes portugueses que ali residiam e nele arrecadavam mercadorias e munições.

A razão da natureza informal da nossa presença no nordeste do subcontinente indiano, em contraste com o sistema altamente estruturado presente na costa do Malabar, explica-se pela facilidade com que as autoridades locais engajavam toda aquela gente à solta, habituada a uma série de privilégios, e nisso se distinguia dos restantes europeus que não só assentariam arraiais na região muito mais tarde (a partir de meados do século XVII) como nunca chegariam a imiscuir-se por completo, contrariamente aos portugueses, no seio das comunidades indígenas. Temos assim, em Bengala, núcleos segmentados de mercadores e aventureiros, oficiais ou privados, embora a distinção entre uns e outros nem sempre seja clara. Entre os desta última casta saliente-se a figura de Filipe de Brito e Nicote, com papel determinante no nosso relato.

O bairro de Dianga, conhecido até finais do século XIX como Bunder ou Feringhi Bunder (o termo sobrevive hoje como Diang Pahar e corresponde, grosso modo, à parede rochosa avermelhada que se estende ao longo dos últimos três quilómetros da margem sul do rio Karnaphuli), surgiu como extensão natural de Chatigão, exactamente no lado sul do rio. Ambos os portos eram senhoreados por Min Razagyi que a si próprio se intitulava “o mais poderoso rei de Arracão, Tripura, Chacomas e Bengala, e também Senhor do Pegu, etc…”. e em Chatigão se fazia representar pelo tio, mantendo com os portugueses ali sedeados a melhor das relações.

A questão Sundiva veio acinzentar o horizonte irremediavelmente, sem que isso, saliente-se, comprometesse a presença dos muitos soldados e conselheiros militares que há décadas pululavam na corte de Mrauk U, capital do Arracão, e restantes portos do reino.

Analisemos agora as circunstâncias do massacre ocorrido em Dianga, em 1607, e o papel que nele desempenhou Brito e Nicote, porventura o mais famoso aventureiro da baía de Bengala. Homem de confiança de Min Razagyi, foi-lhe atribuído o título de “changa” (homem bom) e a administração do porto de Sirião. Mas Brito era pessoa ambiciosa e pouco dada à palavra dada. Assim, sem autorização assenhora-se do porto caindo subsequentemente em desgraça junto do seu antigo empregador que enviaria, em 1605, uma força naval comandada pelo filho Khamaungcom o intuito de o desalojar do entreposto oferecido. Rotundo fracasso. A armada seria desbaratada mesmo antes de chegar a Pegu, e Khamaung acabaria prisioneiro, embora as crónicas coevas não estejam de acordo quanto aos pormenores do incidente. Segundo uns, o príncipe seria capturado por um agente português enviado no seu encalce quando visitava um famoso templo de Prome, na altura aliado de Arracão; para outros, surpreenderam-no os sequazes de Brito na ilha de Hainy, junto ao Cabo Negrais, quando aí descansava após a batalha e antes do regresso a casa.

Fernão Guerreiro, compilador de informes jesuítas, defende a opção Prome, onde o príncipe terá caído numa emboscado montada pelas forças de Brito que o manteve como refém obrigando o pai a pagar por ele elevado resgate e a reconhecer o português como dono das terras do Sirião. Voltaremos a encontrar, mais adiante, este príncipe, já com o estatuto de rei, num frente a frente com um outro português, este de apelido Tibau, de mais dura couraça ainda.

Brito, encorajado pelo sucesso, deslocou-se a Goa para propagandear o seu feito, prometendo ao vice-rei fazer regressar ao domínio da Coroa toda aquela gente lançada por conta própria. Impressionado, Aires de Saldanha, concedeu-lhe o título de fidalgo da casa real e o hábito de Cristo, e ainda a mão de uma sobrinha sua, filha de mãe javanesa. Laureava-se, em Goa, Brito e Nicote com o pomposo e recém atribuído título de “capitão de Sirião e General da conquista do Pegu” na altura em que acontece nova tentativa de conquista do Sirião, desta feita levada a cabo pelo capitão arracanês Banadola, à frente de um larga frota e seis mil soldados. Não contava, porém, que o esperasse um desses homens de dura cepa, neste caso, raramente mencionado, mas dos mais bravos certamente. Falo do vimaranense Salvador Ribeiro de Sousa, responsável pelos destinos do Sirião na ausência de Brito e seu braço direito (há quem considere que estavam em igualdade de circunstâncias). Heroicamente resistiria Sousa essa e três outras investidas arracanesas, aguentando ainda o cerco de oito meses que precedeu a chegada da preciosa ajuda vinda de Goa que lhe permitiria infligir estrondosa derrota na armada de Min Razagyi. Não muito tempo depois irá travar e vencer nova batalha, desta feita frente a um tal rei de Massinga, título que lhe seria colado à pele após o triunfo e perduraria no tempo como o comprova a obra do padre Manuel de Abreu Mousinho, natural de Évora, Ouvidor da Chancelaria de Goa, escrita em Castelhano e traduzida para Português por autor anónimo sob o título de “Breve discurso em que se contém a conquista do Reyno de Pegu na Índia Oriental, pelos portuguezes em tempo do Viso-Rey Ayres de Saldanha; sendo capitam Salvador Ribeiro de Souza, chamado Massinga, natural de Guimaraens, a quem os naturaes de Pegú, elegerão por seu Rey no anno de 1601”, e, já no século XX, inspiraria o romance em verso “O Massinga” do eminente arqueólogo e escritor Martins Sarmento. Tentei identificar nos mapas esse reino e a única Massinga encontrada situa-se no longínquo Moçambique, por sinal senhora de uma belíssima praia. Tal era a reputação de Ribeiro de Sousa que voluntariamente se poriam ao seu serviço mais de vinte mil locais.

Regressado ao Sirião, Brito recebe de Sousa a coroa de Massinga, aceitando-a “em nome do rei de Portugal” e sonhando já – presume-se – com o posto de vice-rei no idealizado “Estado da Índia do Golfo de Bengala”. Rendido perante o poderio militar, o rei de Arracão, dando azo à velha máxima “senão os podes vencer junta-te a eles”, deu sinais de querer firmar uma aliança com os portugueses (à semelhança do que tinham feito os seus congéneres birmanes de Martavão e Tangu) e de imediato Brito e Nicote, aproveitando a aparente fraqueza, enviar-lhe-ia o filho como embaixador à frente de uma delegação que solicitava a entrega do porto de Dianga aos nossos navios e feitores. Só que – o carma é uma coisa terrível! – Min Razagyi não esquecera a afronta sofrida, e mal se fechavam os portões de Mrauk U nas espaldas de Brito júnior e dos seus homens, feria-os já de morte pela frente o gume das espadas assassinas empunhadas pelos sicários do rei arracanês.

Seguir-se-ia uma gigantesca purga extensível a todos os portugueses residentes no reino; quanto aos seiscentos mercadores que pacificamente exerciam a sua actividade em Dianga, esperava-os um torpe massacre a sangue-frio, do qual escapou um punhado de homens em duas embarcações. Entre eles estava um mercador de sal de seu nome Sebastião Gonçalves Tibau, natural de Santo António do Tojal, que não só iria vingar os seus companheiros de armas como desempenharia relevante papel no futuro daquela região.

Joaquim Magalhães de Castro

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