MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 14

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 14

Cristãos de São Tomé de Meliapor

No decorrer da visita guiada à igreja de Bandel, Duke apresenta-me ao padre Toni Kariatal, um desses cristãos de São Tomé de Meliapor, embora tenha sido nado e criado no Estado de Kerala. «Encontramo-nos disseminados pela Índia há dois mil anos», diz o abade, falando-me depois de um certo «Francisco, ex-Presidente português» que ali estivera e que lhe dera o seu cartão de visita e oferecera ajuda, «no caso de necessitarmos algo». Incapaz de ver de quem se tratava acabo por atirar o barro à parede e junto-lhe os nomes de Sampaio e Soares, mas estes não parecem acender qualquer chispa de lume no fundo do túnel labiríntico que é a memória desse bom homem. Com um sorriso, esperançoso que reconhecesse a suposta distinta figura, reforça com um: «teria à volta de 61 anos»; mas nem assim lá chego.

Entre 1522 e 1523, no local onde hoje se mostra a cidade de São Tomé de Meliapor (perto de Madras), os portugueses edificaram uma igreja e em torno dela um assentamento que paulatinamente foi ganhando terreno. Em 1537 eram já meia centena os “casados” e, em 1544, esse número dobrara. Adubado o terreno, sobrevieram os jesuítas, munidos de capela e colégio. Apesar desse rápido desenvolvimento, nos anos decorridos entre a fundação de São Tomé (1522) e a década de 1560, a actividade principal dos portugueses concentrava-se em Paliacate (Pulicat), entreposto fundado em 1518, e que contabilizaria, na altura em que os homens da Companhia de Jesus assentavam arraiais em Meliapor, entre seiscentos a setecentos casados.

Em 1560 o viajante transalpino Cesare Federici descreve São Tomé de Meliapor como “a mais bela de todas as que existem na Índia” e dona de quatro igrejas – ofertadas ao santo padroeiro, a São Francisco, a São João Baptista e à Misericórdia da terra. Nos arredores, consagrava-se a Madre de Deus, o São Lázaro, a Nossa Senhora da Luz e a Nossa Senhora do Monte. Em 1600 a população europeia da cidade crescera para as seis centenas, isto, meia dúzia de anos antes de ser instituída a diocese de Meliapor, de quem doravante passaria a depender juridicamente toda a cristandade da costa de Coromandel e das vastas planícies de Bengala. Em 1607, é oficialmente declarada a cidade de São Tomé de Meliapor e serão precisos sete anos para que os seus habitantes – ou seja, os administrativos, os “casados”, os soldados e a população cristã nativa – se convencessem que estariam bem mais seguros dentro de grossos muros e sob o abrigo de canhões de avultado calibre, manuseados por competente tropa às ordens de um capitão-mor, mantendo-se de plantão o bispo, os priores e as igrejas (que entretanto aumentara o seu contingente para dez), prontos a reconfortar as almas e a enterrar os mortos.

Muito em breve, revezes de monta sofreria a cidade, sitiada, em 1646, pelo governador Mir Jumla. Seguiu-se depois um período incerto e obscuro que se prolongaria ao longo de uma década. A cidade acabaria nas mãos desse vizir mogol, que a guardou até 1672, altura em que os franceses, sob o bastão do almirante Haye, a conquistaram. Dois anos duraria a ocupação gaulesa, momentaneamente interrompida pelos negociantes da VOC – na época em grande forma – que, por sua vez, a deixaram de novo na alçada dos mogóis. O dia era 10, o mês Outubro, o ano 74 do século XVII. Só em 1687 voltaria a dar ar de sua graça a administração portuguesa, muito, muito ténue, incapaz de impedir o derribamento das muralhas outrora erguidas para precaver a cidade. Em 1702 restava-nos, como único privilégio, a autorização de hastear a nossa bandeira aos Domingos e feriados, acabando por nos finarmos naquelas paragens a 21 de Outubro de 1749, quando os ingleses (esses falsos aliados de sempre) a ocuparam definitivamente.

Na mesma altura em que se escavavam os alicerces de São Tomé colonizava-se também Nagapattinam (Negapatão), o melhor porto da costa de Coromandel. Em todos os dez povoados circundantes – em Puthur, Muttam, Poruvalancheri, Anthanappettai, Karureppankadu, AzhingiMangalam, Sangamangalam, Thiruthinamangalam, Manjakollai e Nariyankudi – mandavam os comerciantes portugueses, e tal abundância de almas pecadoras sem pastor que lhes contivesse os ímpetos e a afamada licenciosidade levaria os franciscanos, e mais tarde os jesuítas, a estabeleceram-se na cidade construindo nela e fora dela várias igrejas: a da Madre de Deus; a de São Jerónimo; a de São Paulo; a de São Domingos; a da Nossa Senhora da Nazaré e, capitaneando as restantes, a digna e vistosa Sé. Em 1577, haveria em Negapatão sessenta “casados”, duzentos euro-asiáticos e três mil indianos conversos, abonadores dos serviços da alfândega e dos outros departamentos públicos e também de toda a vida mercantil, uns e outros tranquilizados pelas espessas muralhas da cidade que não seriam tão grossas assim pois esta cairia, derrotada, a 23 de Julho de 1658, incapaz de fazer frente ao poder militar da frota holandesa comandada por Jan van der Laan. Exilados para norte, os portugueses de Negapatão estabelecer-se-iam numa localidade costeira apropriadamente designada Porto Novo.

Feito este interregno regressemos à conversa com o meu simpático interlocutor que repetidas vezes evoca a predominância portuguesa durante o período mogol, lembrando essa figura ímpar que foi o padre João Cabral, a respeito do qual, e a uma pequena parte das suas aventuras, já aqui dedicámos muitos metros de prosa. Se há missionário que merece um estudo aprofundado e apurado da sua vida e acção é este jesuíta natural de Celorico da Beira. Cabral era um homem muito santo e interessado na missão e muito fez pela população local. Sobreviveria ao cerco de Hugli e deixaria imortalizado o seu testemunho uma carta que deve estar no Vaticano ou na sede dos jesuítas em Roma. O padre Toni Kariatal aconselha-nos depois a visitar aquele que é certamente o edifício mais emblemático de Hooghly do período mogol. Chamam-lhe Imambara (“residência dos anjos”) e, no fundo, trata-se de uma mesquita com madraça acoplada, ambas de culto xiita. Bansberia é outro dos locais de visita obrigatória. Dizem-me que nas paredes de um dos templos locais estão representados soldados portugueses. «As pessoas de lá certamente o informarão melhor», diz o padre Kariatal com aquela cândida certeza de quem não tem a certeza de nada mas garante que tem.

Outrora uma das principais aldeias da lendária Saptagram, o principal porto e complexo comercial da região (onde os mercadores lusos inicialmente se instalaram), Bansberia deve a sua fama actual ao templo Hangseshwari, com um estilo arquitectónico sui generis e treze minaretes em forma de botão de flor lótus. Fazem lembrar as cúpulas “bolbos de cebola” das igrejas ortodoxas da Rússia. A imortalização dos nossos soldados de outrora fica num outro templo, o de Vasudeva, com cornijas curvas e uma torre octogonal, construído em terracota em 1679 e, lamentavelmente, de acesso interdito a todos os não hindus. Em Tribeni, local sacralizado pelos Vedas, não muito longe de Hooghly, a mesquita de Zafar Khan Ghazi, de estrutura oblonga, é um dos únicos exemplos sobreviventes de estilo de construção, com tijolos e pedras, introduzido pelos muçulmanos em Bengala que substituiria o tradicional estilo hindu de colocar pedras retangulares umas sobre as outras e sem recorrer à argamassa. As pedras usadas nesta mesquita provêm de templos hindus arrasados, como o evidenciam várias figuras de divindades hindus esculpidas nalgumas das peças.

Joaquim Magalhães de Castro

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