Os Rodrigues de Nagori e a ameaça terrorista
Liberto das suas obrigações dominicais, o pároco de Nagori, Jayanta Gomes (mais um Gomes!), vem abrir-nos a porta da igreja, a tal que está a precisar de restauro e sobre a qual nos tinha falado o arcebispo de Daca. Torna-se claro agora que o padre e a freira de Hashnabad, tomando conhecimento da nossa presença no País e da programada visita àquela paróquia, aproveitaram a boleia para tentar sensibilizar-nos também para as necessidades da igreja local na esperança de, por nosso intermédio, fazer chegar a carta a Garcia. O que é perfeitamente legítimo. Fica bem às pessoas prezarem pelas meninas dos seus olhos. Esperançoso se mostra o padre Gomes, pois é de património com igual ou porventura maior valor que o da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Daca, recuperada graças ao dinheiros da Gulbenkian, que estamos a falar.
Para um leigo como eu o aspecto exterior da igreja apresenta-se bastante regular, e mesmo o interior, se exceptuarmos as paredes com a tinta descascada e umas quantas brechas, natural resultado das frequentes convulsões telúricas, mostra suficiente robustez para aguentar umas boas centúrias mais. Assim não é o entender das entidades eclesiásticas locais. «Para arranjar toda a estrutura precisaríamos de um lakh de dólares», informa o padre Gomes. Ora, um lakh, medida indiana, é o equivalente a cem mil. Ou seja, falamos aqui de cem mil dólares, um valor que só uma instituição como a Fundação Calouste Gulbenkian ou um qualquer mecenas endinheirado pode disponibilizar. «A ideia é transformar este espaço num museu», vai dizendo o pároco enquanto nos conduz à sacristia. Um museu? Mas com que espólio? Para além de um altar de ébano e umas estatuetas de São José e de São Tolentino com uma ovelha na palma da mão encimadas por quadros da Via Sacra, nada que roce sequer o conceito de Arte Sacra se avista nas imediações. De resto, toda a nave desta igreja de São Tolentino, sustentada por colunas de ferro forjado, é do mais singelo que se possa imaginar.
Nagori distingue-se, como aqui foi dito, pela qualidade do ensino ali praticado e esse legado deve-se sobretudo a uma cooperativa de crédito local fundada em 1953 pelo professor Knight Vincent Rodriguez, que ao longo de décadas, graças a programas específicos de empréstimos, permitiu a muitos jovens de ambos os sexos poderem estudar em universidades estrangeiras. Muitos deles voltariam a Nagori, aqui investindo o esforço de tão apurada dedicação. «Recebemos o melhor prémio do sector a nível nacional», diz à publicação “online” Daily Magazine Patrick Rodriguez, filho de Vincent e actual responsável da cooperativa, apontando o exemplo de um dos seus membros, um certo Apu, «empresário na área das pescas, antigo aluno do prestigado Notre Dame College e futuro advogado».
Nagori distingue-se ainda por ter aplicado na comunidade o projecto de resolução alternativa de litígios aprovado em 2010 no Parlamento do Bangladesh. «Na verdade, foram poucas as aldeias a aproveitaram essa oportunidade única para sanar os problemas», acrescenta Patrick. A seu pai, Knight Vincent Rodriguez, ser-lhe-ia atribuído, em 1977, um grau honorífico papal em reconhecimento do seu serviço ao próximo: «Ele fez muita obra social, não só em Nagori mas também em Garo, na província de Mymensingh, onde geria três albergues para os mais desfavorecidos. Fossem muçulmanos, hindus ou cristãos, a todos tratava como filhos seus». Procurando seguir as pisadas paternas, Patrick, ex-gerente bancário, trabalha agora num centro de reabilitação de toxicodependentes. O irmão mais novo, com um doutoramento em liderança organizacional numa universidade norte-americana, está à frente dos destinos da sucursal no Bangladesh da Congregação da Santa Cruz.
Outro ilustre Rodrigues é o professor Santosh, empenhado combatente na guerra com o Paquistão ocidental que daria origem ao País. «Lutámos por todos, independentemente das crenças religiosas», afirma. É este também o entender do seu camarada de armas, Md Shirajul Islam, que o ferimento de uma bala o deixou a coxear. «A única forma de chegar a Nagori era de comboio. Porém, os nossos combatentes explodiram a ponte ferroviária deixando a vila transformada numa ilha», recorda. Esse forçado isolamento beneficiaria os refugiados que aos milhares aqui chegaram. «A todos abrimos as nossas portas», lembra ainda Islam. «Infelizmente, o nosso sonho de igualdade e justiça para todos não se concretizou».
Também Bidhan Kamol Rosario deixou a sua aldeia católica para lutar pela independência do Bangladesh, e também ele questiona o futuro do País ameaçado pelo crescente extremismo islâmico. «Durante a Guerra da Libertação, ansiávamos por um país que abrigasse todos os tipos de pessoas de todas as raças e credos», dizia Rosario, 65 anos, sobre a guerra de 1971 que traria a independência ao antigo Paquistão Oriental. «Nunca quis vantagens ou favores para mim, só almejava direitos iguais para todos… Mas neste momento a verdade é que não estamos em pé de igualdade com os cidadãos muçulmanos».
Muitos cristãos deixaram o Bangladesh nos últimos anos, pois a comunidade é cada vez mais visada pelos ventos da intolerância. Em 2015, dois muçulmanos recentemente convertidos ao Cristianismo foram assassinados e um merceeiro católico foi brutalmente espancado até a morte durante uma campanha de extremistas islâmicos que também visou hindus e outras minorias. Os cristãos representam menos de 0,5 por cento dos 160 milhões de habitantes do Bangladesh, e sempre viveram durante séculos em harmonia com a maioria muçulmana local. Porém, e apesar de desempenharam um papel proeminente na história do País, administrando escolas e hospitais que proporcionam alternativas aos mais carenciados, as autoridades não lhes tornam a vida fácil. Aqui há uns anos, em Nagori, alguns polícias à paisana entraram na casa de uma viúva para lhe roubar dinheiro e quando um grupo de aldeões, alertados para a situação, tentou impedir a saída dos meliantes, vários polícias armados entraram em acção ferindo cerca de vinte pessoas. No rescaldo da operação uma centena de moradores seriam acusados de obstrução ao trabalho policial. Também o consumo do álcool se tornou um problema. Se bem que os não-muçulmanos possam beber legalmente no Bangladesh, é frequente as autoridades prenderem cristãos ou hindus suspeitos de consumirem álcool. Bem mais aterrorizantes são as ameaças à vida de cristãos proeminentes, muitas das vezes anónimas. Nirmal Rosario, empresário de Daca, recebeu uma ameaça de morte no seu telemóvel ao sentar-se ao lado da primeira-ministra Sheikh Hasina durante uma cerimónia natalícia em 2015. «Nunca que aconteceu nada do género! Crescemos em perfeita harmonia com outras religiões», afirmou a uma agência noticiosa.
Aquando da nossa estada, a comunidade católica do Bangladesh aguardava ansiosamente a primeira visita de um Papa em mais de trinta anos. Animava-os a previsível mensagem de paz e tolerância religiosa que Francisco certamente iria transmitir durante a sua visita aquele país empobrecido que nos últimos meses recebera mais de seiscentos mil refugiados rohingya da vizinha Birmânia. Gabriel Amal Costa, um missionário local, lembrava que o aumento do extremismo islâmico estava a prejudicar seriamente as relações com as demais confissões religiosas: «Este é um fenómeno muito recente e a Igreja tenta a todo o custo promover o diálogo inter-religioso». Os ataques terroristas tinham atingido o seu pico em 2015, mas a situação melhora desde que uma grande ofensiva eliminara dezenas de extremistas e metera no cárcere centenas de outros. Também o padre Jayanta Gomes acreditava que a visita do Santo Padre traria mais conforto à comunidade. «Estou muito optimista», referia ele, de sorriso aberto.
Infelizmente, a situação não tardaria a piorar, e de que maneira. Dois meses após a nossa passagem, o Bangladesh assistiria ao maior ataque terrorista da sua história. Na noite de 1 de Julho de 2016, pelas 21:30, cinco facínoras irromperam na padaria Holey Artisan, no bairro de Gulshan Thana, munidos de bombas artesanais, facalhões, metralhadoras e até uma espada, disparando a eito e fazendo várias dezenas de reféns. A noite seria de puro terror, sobretudo para os dezoito estrangeiros ali presentes (italianos e japoneses) que antes de serem barbaramente assassinados forma cortados a golpes de catana, para que sofressem o mais possível. Igual sorte tiveram dois funcionários da padaria. Um deles seria usado como escudo humano quando, na resposta imediata, a Polícia Metropolitana de Daca tentou recuperar o controlo da padaria. Em vão. Dois agentes perderam a vida na tentativa. O pesadelo só terminaria após a intervenção das forças especiais do exército bangladesh que entraram pelos jardins e estabelecimento adentro com dois carros de assalto e dezenas de homens abatendo os cinco terroristas, todo eles jovens e de famílias da elite local, alguns educados na Grã Bretanha e com hábitos de vida ocidentais.
Joaquim Magalhães de Castro