Maria de Lurdes Botelho Machado

Saudades de um “siu ngap”

«Havia uma regra de ouro em casa: não se discutia à mesa! E, da primeira, e única vez que isso aconteceu, o Professor levantou-se, não disse uma palavra. Pregou uma chapada em mim e na minha irmã e deixou a sala de jantar… Nunca mais houve discussões depois desse dia! A disciplina era uma constante mas não era rígida, mesmo para os padrões da época. Aliás, tanto o meu pai como a minha mãe eram bem liberais e deixavam as quatro filhas andar à vontade e os castigos nunca eram pesados».

Estas são palavras de Maria de Lurdes Botelho Machado, nascida em Macau a 20 de Maio de 1949, a segunda mais velha de quatro irmãs que viveram a infância e juventude na Freguesia de São Lourenço. Filha do Professor Silveira Machado que, aos 18 anos, deixou Macau para vir estudar para Portugal.

Ficou algum tempo num colégio de freiras perto da Praça da República, em Coimbra, de frente para a antiga sede da PIDE, na Antero de Quental. Ali teve a sorte, apesar do choque inicial, de ter a companhia de mais duas meninas de Macau que iam também do Liceu Nacional Infante D. Henrique. O facto de serem um grupo que já se conhecia do antigo território português facilitou em muito a adaptação à nova realidade.

Longe de tudo o que lhes era familiar. Com regras rígidas para tudo, logo a começar por ser um colégio de freiras onde apenas havia meninas, ao contrário do Liceu em Macau, que era misto. Aliada a esta diferença, os próprios constrangimentos da época. «Nos anos sessenta três meninas, com ares asiáticos e que usavam uma moda algo diferente, era impossível passarem despercebidas na tradicional e conservadora sociedade de Coimbra», confessa Maria de Lurdes, entre sorrisos. «Por um lado era bom, tínhamos toda a atenção dos rapazes, mas por outro também atraía atenção não desejada!» As calças e os calções que se usavam regularmente em Macau tiveram de ficar na mala durante muito tempo porque as freiras nem as queriam ver. Quanto mais deixarem as meninas asiáticas usá-las na rua ou nas salas de aula…

Ingressou nos estudos de Serviços Sociais em Coimbra onde se formou passado algum tempo e, mais tarde, por ter beneficiado de uma bolsa de estudo do Governo por mérito, acabou por ser colocada em Leiria. Por entre os estudos, a família que entretanto constituiu e os afazeres profissionais, ainda foi capaz de concluir a licenciatura em Política Social. Um feito que, referiu, lhe «tirou muito tempo e foi muito desgastante porque, para além das responsabilidades profissionais, tinha também as responsabilidades familiares» e, para conseguir conciliar tudo isto, teve de «abdicar de muito tempo de descanso».

Na cidade do centro de Portugal acabou por desempenhar toda a vida profissional, tendo mesmo chegado a número dois da Câmara Municipal, isto já nos anos 2000. Aliás, entre graças, salientou mesmo que durante 21 dias, por doença do presidente Raúl Castro, desempenhou o cargo mais alto da edilidade. Tinha sido candidata independente a convite do mesmo presidente. Reiterou ser «completamente apartidária e desligada da política mas não podia declinar o convite» do seu amigo. Passados quatro anos de mandato decidiu que era tempo de descansar e aproveitar a reforma. Agora, entre risos, dedica-se à pintura, uma paixão que surgiu por acaso mas que já deu origem a um pedido do Instituto Politécnico de Leiria para que organize uma exposição.

Infelizmente, O CLARIM não teve a oportunidade de ver algumas das pinturas, que, segundo apurámos, abordam tempos asiáticos. No entanto, ficou-nos prometido que seríamos convidados para a primeira exposição a ser inaugurada em breve em Leiria.

A vida em Portugal foi passando sem nunca regressar a Macau, até que em 1995 teve um «ultimato» da amiga Fátima Santos Ferreira, na altura presidente do Instituto de Acção Social de Macau. Quase que a obrigou a fazer as malas e a regressar à terra natal. «Estávamos em pleno processo de transição e eram precisos quadros qualificados para ajudar a preparar os quadros locais». Tarefa que Maria de Lurdes abraçou com todo o prazer até que começou a perceber que, cada vez mais, se estava a utilizar o Mandarim e a escrever tudo em Chinês.

Nessa altura já o seu pai tinha voltado a Macau, depois de um breve regresso a Portugal nos finais dos anos setenta, após se ter aposentado. O Professor Silveira Machado nunca se adaptou à vida em Portugal e optou por deixar a família e regressar a Macau, onde passou a leccionar na Escola Comercial.

Maria de Lurdes, acedendo ao convite da amiga, viu isto como uma boa oportunidade para «polir o Cantonense», que nunca esqueceu, e para «estar perto do pai». Fala fluentemente Cantonense e sempre fez questão de se actualizar. Também sempre falou Cantonense com os seus subordinados e superiores chineses. Mas o facto de se estar a usar, cada vez mais, o Chinês na escrita, fazia com que não se sentisse «completamente confortável no desempenho das funções profissionais».

A 31 de Dezembro de 1998 deu por terminada a comissão de serviço e regressou a Portugal, deixando o território para apenas voltar, em finais de 1999, «com a missão de tentar convencer o pai a regressar definitivamente a Portugal». Intenda que não resultou como esperado, tendo o conhecido professor ficado em Macau e a restante família (as quatro filhas e a esposa) em Portugal. Maria de Lurdes deixou Macau com a promessa de nunca mais voltar mas, em 2007, uma forte sensação de que algo estava mal fez com que, de um momento para o outro, decidisse ir a Macau com a irmã mais nova. Já nessa altura o pai estava no Lar da Santa Casa da Misericórdia. Três meses depois (a 18 de Novembro de 2007) morria o Professor Silveira Machado, após uma vida dedicada a Macau, onde tinha chegado aos sete anos de idade para estudar no Seminário. Uma vida cheia de família, dedicação à causa pública e muitos amigos. Também ele um dos fundadores d’O CLARIM.

Quando questionada sobre aquilo de que sente saudades de Macau, disse sentir «falta dos piqueniques em família, ali para os lados do paredão onde agora está o jetfoil», especialmente à noite onde ia com o pai e com a mãe, Margarida Maria Botelho, e com as outras três irmãs para comer “siu ngap” pelo fresco da noite.

JOÃO SANTOS GOMES

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