«Com os jesuítas a nossa língua podia ter chegado mais longe».
A professora e investigadora Maria de Deus Beites Manso, docente na Universidade de Évora, fala a’O CLARIM sobre o seu mais recente livro, “História da Companhia de Jesus em Portugal”, com a chancela da Editora Parsifal.
O CLARIM – Como é que surgiu a ideia de escrever um livro sobre a história dos jesuítas em Portugal?
MARIA DE DEUS MANSO – O primeiro impulso partiu do convite que o editor Marcelo Teixeira me dirigiu aquando da apresentação do livro “Filhos Esquecidos do Império”, de Joaquim Magalhães de Castro. Hesitei, mas acabei por aceitar o desafio. Há muitos anos que investigo a Companhia de Jesus no Império Português, particularmente no Oriente. Pelo facto, penso que seria uma oportunidade para reflectir sobre o papel que a Ordem teve em Portugal e nas colónias, num intuito de mera síntese histórica. O livro não é uma tese de mestrado ou doutoramento, mas uma síntese histórica.
CL – A Ordem religiosa teve uma actuação muito diferente nas Américas e na Ásia. Concorda com esta afirmação? De que forma caracteriza a acção da mesma no continente africano?
M.D.M. – Sim. A Ordem na sua acção pautou-se pela adaptação aos espaços em que se movimentava. Em África, esteve presente em Marrocos, Angola, Guiné, Cafrária, Etiópia e igualmente na Costa Oriental. A frequência inaciana no continente africano também é vasta e significativa. Em todos os espaços, desde que tivessem condições para o fazer, impunham uma nova língua, o Português, e uma estrutura administrativa política e cultural (ensino) que permitisse um prolongamento da sociedade europeia, neste caso lusa. Aqui, tentava-se igualmente ajudar a estabelecer o Cristianismo e a melhorar as práticas religiosas dos “velhos cristãos”, de acordo com o que o Rito Romano estabelecia. Assim, favoreciam a presença/circulação portuguesa e em muitas regiões, particularmente a parte oriental, tentavam evitar o processo de islamização. Refira-se que o Cristianismo cresceu em África (como em outras regiões) igualmente porque as autoridades locais o permitiam. Por exemplo, a Coroa Portuguesa via na missionação do Congo uma alavanca para o avanço do Cristianismo em África e as autoridades congolesas viam na nova fé uma forma de aumentar o seu poder e autoridade na região.
CL – Qual foi a relevância da Ordem para Portugal?
M.D.M. – Evidencio os seguintes dados: importância no ensino tanto em Portugal como no espaço ultramarino; independentemente do credo que cada um possa praticar e dos exageros que possam ter sido praticados em nome de Cristo, esta renovou globalmente a Igreja Católica, a ideia de missão e de missionário, sendo simultaneamente um entrave ao avanço do Protestantismo; a esta se deve em particular a divulgação do pensamento e cultura ocidental fora da Europa e vice-versa e a importância da língua portuguesa no mundo.
CL – Por que motivo foram os jesuítas considerados uma ameaça e, como consequência, expulsos de todas as partes do reino? Qual era, afinal, o receio do Marquês de Pombal?
M.D.M. – Diversas razões se irão conjugar. A alteração governativa de Sebastião José de Carvalho e Melo, que depois se tornaria o Marquês de Pombal, transpõe um mero dilema colonial e educativo. A mudança sublinhou sobretudo a crise de poder entre a Igreja e o Estado. O regalismo, enquanto fundação adoptado pelos monarcas absolutos de natureza iluminista, veio legitimar uma interferência temporal em matérias que até então eram da alçada espiritual. O regalismo defrontava-se com um processo de afirmação e consolidação de poder face à Companhia de Jesus. Esta era tida como um contrapoder do regalismo que tentava colocar na dependência temporal a Igreja e, especialmente, a dessacralização do poder temporal. O clero era considerado uma ameaça, principalmente os jesuítas que eram tidos como um reduto do poder papal.
CL – Quais as consequências na sociedade portuguesa dessa extinção?
M.D.M. – Creio que o sistema de ensino se ressentiu em Portugal e nos seus domínios ultramarinos. Sou de opinião que se a sua acção não tivesse sido interrompida, poderia ter dado continuidade/fortalecido o processo de missionação iniciado no séc. XVI e com ela a presença, língua e cultura portuguesa ter-se-ia alargado por regiões que ultrapassava o Império Português. Talvez a língua de Camões tivesse chegado mais longe ou fosse mais sólida em algumas regiões do globo.
CL – Qual a actual relevância do Companhia de Jesus em Portugal?
M.D.M. – A sua vocação missionária continua. Hoje, os jesuítas portugueses não estão tão dispersos pelo mundo, mas estão presentes em Moçambique, em Angola, em Timor, na Província Chinesa e na Província do Japão. Tal como outrora, continuam a dedicar grande atenção ao ensino. Para além de diversos colégios que orientam, buscam estar presentes em distintas áreas da cultura, através do ensino em algumas universidades e na publicação da revista Brotéria. Entre outros cuidados, destacamos as obras de cariz social dedicadas ao apoio de imigrantes e refugiados, como é o caso do Serviço Jesuíta aos Refugiados e o Centro São Cirilo.
CL – O Papa Francisco tem sido criticado pelos sectores mais conservadores da Igreja Católica. O que acha da sua actuação? Personifica Francisco o típico jesuíta?
M.D.M. – Sem dúvida. O Papa é um jesuíta. É a primeira vez que temos um Papa latino-americano e jesuíta, simultaneamente o primeiro Papa não europeu desde o ano 752. O Papa Francisco surgiu numa época em que cada vez mais a Igreja deve reflectir sobre o seu papel na sociedade. Hoje, a Igreja de Roma terá de colocar em acção uma cruzada, não a cruzada da evangelização da época moderna, mas a cruzada do ecumenismo, do diálogo inter-religioso e de adaptação a uma sociedade permanentemente em mudança, onde as ambições económicas e políticas se acentuam a cada dia que passa. Os desafios que a Igreja agora enfrenta não são apenas dogmáticos, mas problemas tão reais como a fome, o desemprego, as guerras, a pedofilia, os direitos proclamados por algumas minorias, como é o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adopção de crianças por estes casais. Numa sociedade que se pretende igualitária, a questão do sacerdócio feminino certamente se colocará. Estes e outros assuntos forçarão a Igreja de Roma a pronunciar-se e a tomar posição face aos grandes conflitos que se colocam, seja a grave crise migratória ou as guerras que assolam parte do nosso planeta. Acredito que o Papa seja uma voz activa neste mundo em mudança.
CL – Visita com alguma regularidade Macau. Está prevista alguma apresentação no território?
M.D.M. – Penso estar em Macau em Maio e Junho de 2017. Seria um prazer apresentar o livro no território, não só pelas amizades e colaboração científica que aí mantenho, mas pelo significado que os jesuítas tiveram em Macau. Até ao momento, nada está agendado, mas muito me honraria fazer a apresentação da obra.
Joaquim Magalhães de Castro