Lepra

A “filha primogénita da pobreza”

Hoje não vamos falar de um tema dos mais fáceis. Mas não podemos virar a cara nem esquecer esta “maldita” doença contagiosa, a Lepra. Cumpre assinalar que dia 30 de Janeiro próximo é o Dia Mundial dos Leprosos, com peditórios por todo o mundo e o envolvimento, já multissecular, da Igreja Católica como a instituição que historicamente mais tem abraçado, literalmente, esta doença.

A palavra só por si é evitada, conotada tão negativamente que muitos se abstêm de a citar. Mas mais do que a palavra, a doença existe. E continua a ser alvo de estigmas e preconceitos, medos, terror. É talvez a pior das doenças, um flagelo pior que a guerra ou a peste, a fome. É para muitos um castigo. Exclui, segrega, atemoriza! A lepra é também conhecida como “a doença mais antiga do mundo”, afectando a humanidade há pelo menos 4000 anos, cujos primeiros registos escritos conhecidos foram encontrados no Egipto, remontando a1350 a.C.

 

O que é a Lepra?

A lepra é uma doença muito contagiosa, através da saliva, principalmente. Recebe as tristes designações de lepra, hanseníase, morfeia, “mal de Hansen” ou mal de Lázaro. A denominação hanseníase deve-se ao descobridor do microrganismo causador da doença, o médico Gerhard Hansen. É uma doença infecciosa causada pelo bacilo Mycobacterium leprae (também conhecido como “bacilo-de-hansen”) que causa graves danos nos nervos e na pele, muitas vezes irreversíveis e mutilantes. O termo “lepra” está em desuso devido à sua conotação negativa histórica. Se vimos o filme Papillon (1973, de Franklin Shaffner, a partir da obra homónima de Henri Charrière, 1969), recordamos uma das cenas mais terríveis do mesmo, quando Papillon se acha numa aldeia de leprosos e é obrigado a cumprimentar um leproso e a partilhar o seu charuto. Algo que quase ninguém faria, mesmo algo em que nenhum leproso acreditaria. Quase ninguém…

 

A Lepra na Bíblia

Lázaros, gafos, leprosos, chamemos-lhes o que quisermos. A Bíblia também não deixa de os referir, incluir. Fundamento da fé, as Sagradas Escrituras terão na doença maldita uma imagens mais impressivas e retumbantes da acção de Cristo, pois a sua primeira cura milagrosa foi precisamente a um leproso. Uma clara afirmação do amor ao próximo, seja ele quem for, da inclusão social, da importância da obediência. Vêm já desde o Antigo Testamento as referências à lepra, embora antes de Jesus . As últimas orientações que Moisés dá ao povo de Israel foram: «Guarda-te da praga da lepra e tem diligente cuidado de fazer segundo tudo o que te ensinarem os sacerdotes levitas; como lhes tenho ordenado, terás cuidado de o fazer (Dt 24,8)». Ou na distinção entre o limpo e o imundo (Lv 14,54-57), a chamada “lei da lepra” que cria logo em si grande parte da carga negativa da lepra. Por isso, já no Novo Testamento, a acção de Jesus ganha ainda maior notoriedade, quando Ele faz algo tão inconcebível para o Judaísmo (e para o Antigo Testamento): tocar num leproso. No Judaísmo quem tocasse num leproso era contaminado, recebia no seu corpo a lepra do enfermo e passava a ser marginalizado. Mesmo até se não fosse contagiado.

 

Jesus e os Leprosos

Lázaro é o mendigo e leproso protagonista da parábola de Jesus, “O Rico e Lázaro”, reproduzida em Lc 16,19-31. E a primeira cura é de lepra, como vimos (Mt 8,1-4, Mc 1,40-45, Lc 5,12-16), com a humildade e clamor de cura pelo leproso, a que Jesus concede a graça de o livrar da enfermidade, afirmando o poder da fé em Deus sobre a morte, a doença. A lepra é também a metáfora do pecado, do qual Deus nos livra. A lepra insensibiliza o doente, que perde a dor, como o pecado nos torna insensíveis e indiferentes às suas consequências e ao mal. Cristo é a fonte de esperança na salvação, na cura do pecado. E a primeira coisa que o leproso fez em Mateus foi logo se ajoelhar e adorar a Jesus, que é Deus.

 

A Lepra e a Igreja

A Igreja esteve sempre na vanguarda da luta contra a pobreza, logo contra a sua “filha primogénita”, expressão de Raoul Follereau (1903-1977), fundador da Associação Raoul Follereau e um dos maiores lutadores contra a lepra.

Mas quando falamos em lepra, temos que recordar São Francisco de Assis e São Damião de Moloja’i, entre outros. Mas estes são de facto duas marcas intemporais do abraço da Igreja aos leprosos, na inclusão, na justiça, na ajuda e no afecto. O primeiro, no séc. XIII, quando a lepra atinge o auge da exclusão e maldição, porque ainda existia no seio das cidades (ou perto delas), na velha Europa e na Ásia, de forma presente. Sinetas que tocavam, vem aí gafos (leprosos), todos fugiam daqueles andrajosos, com roupas esfarrapadas, pedindo comida e esmolas, misericórdia, bênçãos. Mas todos fugiam e se fechavam. Francisco não o fez. Em 1206, passeando a cavalo perto de Assis, viu um leproso, que sempre lhe parecera um ser horripilante, repugnante à vista e ao olfacto, cuja presença sempre lhe havia causado invencível nojo. «Tudo o que fizerdes ao menor de meus irmãos, é a mim que o fazeis (Mt 10,42)»: Francisco beijou o leproso e esmolou-o, tocando-lhe! Vivendo o Evangelho de Mateus. Gesto inenarrável, imagine-se o impacto! Mas mostrou que o leproso é humano, é ele um rosto de Cristo sofrente. Para Francisco, foi o discernimento na entrega a Deus. A vitória da fé sobre o corpo, sobre as inibições e os grilhões do mundo, do luxo, do comodismo, das velhas mentalidades.

Mas talvez ninguém tenha vivido o amor aos leprosos como São Damião de Veuster (1840-1889), SS.CC., missionário católico belga da Congregação dos Sagrados Corações (padres de Picpus), venerado especialmente pelos habitantes do arquipélago do Havai e pela cristandade em geral por ter dedicado a sua vida ao cuidado dos leprosos de Moloka’i, no reino do Havai. Morreu precisamente de lepra, na ilha de Moloka’i, onde se estabelecera em 1874 a dirigir a leprosaria, tanto espiritual como institucionalmente, imolando-se no próprio sofrimento dos marginalizados e excluídos pela doença que ali viviam segregados. Tinha chegado ao Havai em 1863. Em 1884 descobriu que estava leproso, morrendo em 1889. O seu amor e entrega à causa da lepra são intemporais, considerado por muitos como o “mártir da lepra”, o homem que mais fez por dar conforto e mitigar o sofrimento. Foi beatificado em 1995 pelo Papa São João Paulo II e canonizado em 11 de Outubro de 2009 pelo Papa Bento XVI.

Como em Ka Ho, na leprosaria, iniciada em 1885, para acolhimento dos leprosos de Macau, hoje abandonada. Recordando o padre Nicosia, o “anjo dos leprosos” de Macau.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *