Benteng Portugis
É deveras agradável a viagem que se segue; e, como tem sido uma constante neste rincão da Java Central, uma vez mais a faço na companhia das árvores de teca e biliões de espigas de arroz. Até que o mar desponta ao longe, ou melhor dizendo, desponta lá no horizonte em forma de ilhota plantada mesmo em frente à aldeia de Ujungwatu, anfitriã do Benteng Portugis, “o forte português”. Espera-me aí um pórtico gigantesco de cor amarela encimado – surpresa das surpresas – por um escudo com as armas de Portugal! E, note-se bem, é um escudo fidelíssimo – tal como o do luso estandarte, com sete torres e cinco quinas. Ou seja, tudo indica que o município de Jepara, ainda que de forma involuntária, esteja a fazer mais pela memória de Portugal nestas redondezas do que toda uma diplomacia oficial (e oficiosa) em peso que raramente cumpre com a obrigação de estar atenta aos pequenos sinais, bem mais valiosos que os fogachos da representação. Lamentavelmente, raro é a sobranceria ligar a minudências do género, entretida que está com as recepções e a vida social imposta pelo protocolo. E como a Europa tem por hábito andar a reboque, há que marcar presença nos coquetéis de uns e outros, para se mostrar e ser visto na companhia das respectivas caras metades, cada vez mais eles do que elas. A pouco mais do que isto, o que atrás fica dito, se resume a actividade de algumas das nossas representações diplomáticas, um sorveduro de dinheiros públicos é o que é.
Retomemos então, e presto, o enredo Benteng Portugis. Por detrás do monumental pórtico, como que a sustê-lo, deparo com a réplica de uma muralha avantajada e alta. Coaduna-se, apenas no propósito, com o pequeníssimo baluarte rectangular escondido por uma densa mata no topo de uma colina ali próxima, esse sim o verdadeiro “forte português”. O do pórtico é só fachada e acessório chamativo, cartão de visita escolhido pela municipalidade de Jepara que teve o cuidado de prover este espaço recreacional com uma série de dispositivos onde não faltam os típicos cenários para posar em frente ao coraçãozinho vermelho, símbolo universal do ilusório amor. E o “We Love Benteng Portugis” deixa-me cheio de orgulho, confesso. Pela primeira vez na vida me disponho a posar em frente a um desses imortalizadores de momentos únicos. Por este e outros motivos, merece o lugar delonga de mais de 24 horas. Há para o efeito, disponíveis para alugar, uns cinco ou seis bangalós, se bem que a electricidade seja uma incógnita incerteza. Basta uma tempestade para deixar tudo às escuras. E tempestades, por estas bandas, e nesta altura do ano, abundam como as cerejas em ano de farta colheita.
Em jeito de adenda, encontram-se espalhados pelo parque temático em miniatura umas quantas barracas de comes-e-bebes e uns restaurantes que operam segundo as necessidades do cliente. À frente do negócio estão alguns dos habitantes de Ujungwatu, aldeia separada do recinto por um outro pórtico-muralha-faz-de-conta, embora mais pequeno. Admito que possa ser impressão minha, mas parece-me ver numas quantas dessas pessoas óbvios traços lusitanos. Por isso, imortalizo-lhes os rostos com um clique da objectiva e cuidadosamente os guardo no conveniente, embora periclitante, cartão sd de 32 GB. Se aqui viveram portugueses, aqui deixaram descendência. Ademais, os pequenos barcos de pesca de proa e popa altas que avisto na pequena baía são outros possíveis elementos identificadores da herança lusitana. Ujungwatu, tão só um lugarejo, conta com cinco ou seis igrejas (metodistas, evangélicas, católicas) e apenas duas mesquitas.
Embora não haja notícia de por cá terem pregado os nossos padres, a esta predominância cristã numa região fortemente muçulmana não será estranha certamente a comprovada histórica presença dos portugueses na região. Como antes foi dito, estes ocuparam o forte apenas durante alguns anos, tendo a queda de Malaca ditado o abandono oficial destas paragens. Para a tradição local, no entanto, a apressada partida deveu-se “às muitas escaramuças travadas entre eles [os portugueses] das quais resultariam inúmeras vítimas”. Diz ainda a lenda que no separador marítimo entre o bastião português e o ilhéu de Mandalika (há aí apenas uma torre de sinalização) existe um medonho redemoinho – “o portão do palácio de Luweng Siluman, habitado por um demónio” – que terá sugado todos os brancos [os portugueses] para as profundezas do mar. A insegurança vivida naquelas águas (devido aos ataques de piratas) após a extinção do sultanato de Demak e subsequente transferência da actividade comercial para o reino interior de Pajang, explicará certamente a origem de semelhante lenda. Há também quem não ouse entrar no forte, pois receia ser perturbado pelos espíritos ali residentes.
Garante ainda a mitologia caseira aos amantes que visitam este forte uma separação futura quase certa. Felizmente, pouco gente dá ouvidos a semelhante crendice, e o Benteng Portugis, para bem da reputação de Portugal e do seu passado, ao invés de maldição é talismã. Permanece predilecto local de romance e de namoro. É vê-los, a eles e a elas, recém-chegados de motocicleta, a posarem muito juntinhos ao pé dos cenários predilectos.
Joaquim Magalhães de Castro