A Lojide Jepara
Há documentos que nos dão conta da ida do luso-indiano Jorge da Cunha e Costa, como embaixador do Estado da Índia, à corte de Mataram. Com ele transportava valiosos presentes, peças de artilharia e um sino de bronze – itens capazes de impressionar o monarca, que mantinha acesa a esperança de uma ajuda militar portuguesa. Só com esse auxílio poderia almejar desalojar os holandeses de Batávia. Como era então habitual, Cunha e Costa entrou pelo porto de Jepara, sendo aí condignamente recebido pelo governador da cidade, Kyai Demang Laksamana, que o acompanharia à corte de Mataram, sedeada na cidade de Kota Gede, actual bairro de Yogjakarta. Sabemos que se mantinham activos naquele porto muitos mercadores portugueses e luso-asiáticos, pois o governador mostrou vontade que ali continuassem. E para o comprovar receberia de braços abertos, em Abril de 1635, um grupo de jesuítas vindos de Malaca com destino a Bali. É de crer que já anteriormente Kyai Demang Laksamana tenha solicitado a instalação de uma missão dominicana em Jepara, aproveitando a presença dessa congregação na ilha de Solor.
Entretanto, com a queda de Malaca, em 1641, fica sem efeito o acordo selado entre Mataram e Portugal, sendo a nossa tropa forçada a abandonar Jepara logo no ano seguinte. Afastado o protagonismo de Goa e perdida Malaca, Macau assumirá importância no comércio com Jepara e Mataram, e com ela a comunidade luso-asiática sedeada em Macassar. Jepara era então um grande porto de escala, mas também de trocas, dos navios portugueses e luso-asiáticos que da Índia, sobretudo do Coromandel, rumavam a Macassar. É essa a razão da missão a Mataram, em 1648, do aventureiro e magnata Francisco Vieira Figueiredo, que ali foi em representação de um duplo interesse: o dos lusos-asiáticos e do sultão de Macassar. Vê-lo-emos, pelo menos, em duas outras ocasiões em Jepara, em 1651 e 1657, pois acreditava que esse porto poderia desempenhar idêntico papel ao de Macau, sendo necessário, por isso, a presença dos jesuítas, seus aliados de sempre. Um ano depois chegava o emissário Jerónimo de Miranda, vindo de Banten onde fora garantir o abastecimento de arroz. À perda de Malaca juntava-se a do comércio com o Japão ocorrida alguns anos antes, o que enfraqueceria ainda mais a posição de Portugal na Ásia. Já antes, o País perdera nas Malucas territórios para os holandeses e para os espanhóis. Não havia gente lusa para tanto.
É breve a minha visita a Jepara, e em vão procuro sinais da lusa estada naquele que aparenta ser o “centro histórico”, espaço arborizado com um mercado coberto a servir de marco principal. O quadro mais próximo da época de Seiscentos é o canal de águas turvas, o Kali Wiso, e o casario construído ao longo dele, sem espaço para margens. No alto da colina, a meio quilómetro do centro, espreita o forte holandês, conhecido localmente como Loji Gunung (monte loji). As “lojis” – derivado do vocábulo português “loja” – eram entrepostos de comércio, basicamente armazéns fortificados. O de Jepara, datado de 1613, fora autorizado por Raden Mas Jolang, primeiro rei de Mataram, pai de Agung, talvez na esperança de que a empresa holandesa lhe servisse de aliada contra a cidade rival de Surabaya. Porém, em 1618, um mal-entendido resultaria na destruição do loji e a morte de três funcionários da VOC, tendo sido capturados todos os restantes residentes. Como represália, a frota holandesa – nesse ano e no ano seguinte – destruiu grande parte da cidade.
Para assinalar o sítio – e torná-lo mais turístico – foi erguido à entrada um vistoso pórtico ao estilo greco-romano pintado de branco. Do benteng propriamente dito restam partes da muralha e pequenos muros musgosos. Nos relvados contíguos, pejados de sepulturas anónimas, pasta um rebanho de cabras sob o olhar atento do pastor. Na ponta oeste da fortaleza é possível disfrutar da sombra de um gazebo de tecto abobadado mas já não se avista a baía outrora enaltecida por Tomé Pires – “a mais bela de todos os portos até agora visitados”. Em seu lugar, no terreno reclamado ao mar, palmeiras e casario, e, destacando-se deles, o estádio Gelora Bumi Kartini, orgulho da comunidade local. Há nas redondezas do Belanda benteng um interessante cemitério, maioritariamente muçulmano mas onde pontuam campas de cristãos (chineses e holandeses). Tento encontrar, uma vez mais em vão, apelidos portugueses. Não me lembro de ter deparado anteriormente com um cemitério do género; cemitério misto. Há campas com azulejos de muitas feições ou feitas de simples pedras de coral a delimitar o espaço sepulcral. Destaca-se além um mausoléu, que a julgar pelo nome deve pertencer a um chinês influente. Não passa agora de simples ruína. É difícil perceber se a calamitosa condição se deve a um acto da natureza ou à desabrida fúria humana. Buracos de balas e duas lápides vandalizadas de modo a que não se consiga decifrar o que lá vem escrito, apontam claramente para a segunda hipótese.
De novo na baixa da cidade, registo com fotogramas curiosos murais alusivos a um festival local – o Perang Obor (guerra da tocha) – e outros de óbvia crítica social e política. O mote é: “vamos colorir Jepara”; e o justificativo, perfeitamente legítimo: “nós apenas decoramos a cidade”.
Doravante, e a caminho do forte português, há só um rumo a seguir, o do Jalan Benteng Portugis, na verdade, um incomum trecho rodoviário que se estende por várias dezenas de quilómetros.
Joaquim Magalhães de Castro