JAVA MENOR – 12

JAVA MENOR – 12

O amuleto de Demak

Em busca de possíveis vestígios da herança portuguesa prossigo a minha viagem rumo a Demak, seguindo a afamada Post Road, ou “a Grande Estrada”, como a designava o governador holandês Herman Willem Daendels. Construída por ordem do rei Lodewijk Napoleon – dono dos Países Baixos durante o período das guerras napoleónicas – esta via militar destinava-se a facilitar o acesso da tropa e dos mantimentos.

Mal chego à cidade dirijo-me à mesquita Agung Demak, pensando que ali estivesse a sepultura de Sunan Kalijaga, um dos santos muçulmanos responsáveis pela disseminação do Islão em Java. Dizem-me que não; que está numa aldeia ali próxima. Seja. O que não falta nesta mesquita são túmulos e, por sinal, bastante requisitados por quem procura nos mortos o sentido para a vida.

Afirmava Tomé Pires ter Demak mais habitantes do que qualquer outro porto de Sunda ou de Java. Devido à riqueza do solo, naturalmente fertilizado pelos vulcões e com vertentes favoráveis a uma boa irrigação, abundava aí o arroz, produto exportado para Malaca, cidade com a qual o sultanato sempre manteve boas relações mesmo após esta ter passado para a Coroa Portuguesa. Demak era, pois, movimentado ancoradouro à entrada do amplo canal que separava Java da vulcânica ilha de Muria. Nas suas águas, entre os séculos XV e XVIII, navegavam inúmeros navios rumo às apetecidas “ilhas das especiarias”. Sensivelmente a meio desse conduto (hoje em dia aterrado) desaguava o rio Serang, fulcral no acesso ao interior onde se cultivava o arroz.

Com uma localização estratégica destas Demak tinha tudo para se tornar em lugar de sobejo valor. Vetusta crónica chinesa encontrada num templo em Semarang aponta Raden Patah como fundador da cidade, “numa área pantanosa a norte de Semarang”. Ilustra superiormente o poder deste monarca o nosso Tomé Pires ao afirmar que “se Albuquerque fizesse as pazes com o Senhor de Demak, toda a Java seria forçada a fazer as pazes com ele”.

Além das cidades-Estado javanesas, Raden Patah senhoreava também os portos de Jambi e Palembang, no leste de Samatra. E como grande parte da riqueza citadina provinha do comércio e do controlo costeiro, não será desacertado considerar Demak uma verdadeira talassocracia. A Raden Patah sucederia o cunhado, Pati Unus (ou Adipati Yunus), que governou de 1518 a 1521. Antes de sentar no trono, administrara este nobre javanês um Estado vassalo, ao norte, chamado Jepara. Yunus – a forma em Árabe de Jonas, o profeta que passou três dias no ventre de uma baleia – é, de resto, personagem frequente nos textos portugueses, embora não conste dos anais javaneses. Na Suma Oriental, por exemplo, Pires refere-se a ele como “Pate Onus” ou “Pate Unus”, cunhado de “Pate Rodim (Raden Patah), o senhor de Demak”.

Ousaria o javanês, por duas ocasiões, em 1511 e 1521, acometer sobre Malaca com o objectivo de lá expulsar os portugueses. Embora não tivesse sucesso na empresa, a sua intrepidez granjear-lhe-ia o honroso cognome “Pangeran Sabrang Lor”, isto é, “o príncipe que atravessou (o Mar de Java) para o norte (península da Malásia)”. Seus ossos repousam agora, sob lajes de mármore, ao lado dos do missionário R. Abdul Fattah Al-Akbar Sayyidin Panotogomo e de Dewi Murthosimah, talvez a sua mulher. Saliente-se que os túmulos de Yunus e Dewi situam-se num patamar inferior ao do missionário. Ou seja, o poder laico sujeita-se ao poder religioso. A uns e a outros algo de relevante – só pode – solicitam as pessoas ajoelhadas em frente à grade que separa o recinto público da necrópole.

Seguir-se-ia, na cronologia histórica desta cidade, o reinado do carismático e expansionista Trenggana, que logo em 1527 derruba o último bastião do reino hindu de Majapahit, concedendo a Demak o estatuto de única potência de Java. A sua influência estendia-se ao sul de Samatra, às ilhas Malucas, a Lombok e às Celebes. Em 1545 Trenganna convoca todos os seus vassalos para a conquista do Principado de Panarukan, no extremo leste da ilha. Ora, nessa altura estava Fernão Mendes Pinto em Banten pronto a servir o sultão local que, como vassalo do de Demak, participaria na ofensiva. Assim, sabe-se desta ousada operação graças ao relato do aventureiro português. Tal era o poder de Trenganna que o compararia sem hesitar ao poderoso Grão Turco – com quem, de resto, Trenganna pretendia rivalizar enquanto paladino do Islão – um certo padre Manuel Pinto, auxiliar dos jesuítas em Macassar. A morte deste sultão em 1548 esfumaria todas as pretensões e, como consequência, Demak feneceria, passando a hegemonia para o reino agrário de Pajang, não muito longe de Surakarta; isto, durante quarenta anos, até ao advento do também agrário e muito mais perdurável reino de Mataram.

Aprecio muito a tranquilidade das mesquitas indonésias, onde para além de orar pode o crente repousar, não havendo etiquetas quanto à posição escolhida. Sim, é verdade, pode-se tirar aqui uma boa sesta aproveitando o fresco do lajedo. Ou não é dormir um acto intrinsecamente sagrado? No pequeno museu adjacente exibem-se restos de vigas e postes da estrutura original da mesquita. À saída, um funcionário oferece-me um terço islâmico que de imediato coloco na parte de dentro do pára-brisas, pois quando se anda na estrada todos os amuletos são bem-vindos. Não posso deixar de notar o aspecto mais islamizado desta cidade – comparativamente com outras –, assim como o casario de traça sínica e as pitorescas carroças puxadas por parelhas de cavalos. O cliente seguinte é uma longa recta de dezenas de quilómetros, sempre ao longo de um apertado canal, quiçá restos daquele que separava a ilhota de Muria da Grande Java. Basta atentarmos a um mapa antigo para nos apercebermos desta realidade.

Joaquim Magalhães de Castro

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