Irão, trinta anos depois

Um país num aeroporto.

Nos corredores de acesso ao portão “Q” do aeroporto mais centro comercial do planeta desde logo as topo, às iranianas, apressadas nas compras de última hora e com o cabelo solto que só voltará a conhecer véu horas mais tarde, já em pleno voo XL, o mais longo trajecto da destemida Air Asia praticamente dona do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur. Desta feita, o pássaro grande permite que eu estenda as pernas e ocupe três assentos sob o olhar complacente das discretas hospedeiras de bordo, altas de estatura e de nariz aquilino, recatadas no traje e ainda e teimosamente de cabelo solto. O véu só cobrirá parte da cabeça, das ditas e de muitas das suas compatriotas passageiras, minutos antes de aterrarmos no aeroporto Imam Khomeini, em Teerão, após umas turbulentas oito horas e meia de voo, passava já da uma da manhã, hora local. A publicidade hipster à marca de malas de viagem American Tourister nas bagageiras não deixa de constituir pormenor curioso numa aeronave ocupada essencialmente por passageiros iranianos…

Senhores de todo o tempo do mundo mas de ar façanhudo os indivíduos dos serviços de imigração mais parecem estar a fazer um frete do que a exercer um controlo efectivo. Evocam personagens que vi retratadas nos filmes, dos muitos que anualmente produz uma indústria criativa e dinâmica que tem a sua Cinecittà nos áridos terrenos de Noor, nos arredores da cidade de Qom. Funcionários estatais enfiados em fatos de alfaiate de bairro ou em uniformes descuidados. A barba, tradição oblige, é de vários dias. São em tudo iguais aos que vemos no cinema de autor iraniano.

A possibilidade de obtenção de visto à chegada veio facilitar, e muito, a vida ao viajante. Mas antes de usufruir desse privilégio há que fazer um seguro de saúde no valor de quinze dólares num guiché onde se esconde um homenzarrão com o ar aborrecidíssimo. Como não tem troco para a nota de cem dólares que lhe apresento, indica-me o guiché em frente, onde um outro entediado desta vida de canseiras folheia o jornal e parece não prestar grande atenção ao desafio entre o Barcelona e o Chelsea que um gigantesco plasma ao seu dispor transmite. Depreende o homem, vá-se lá saber porquê, que pretendo trocar dinheiro e, sem despegar os olhos do jornal, aponta algures para o átrio das chegadas. Só após lhe ter explicado o porquê do meu requisito, lá me entrega cinco notas de vinte, quase a contragosto e deixando bem claro, com o olhar, que o pedido viera interromper-lhe a leitura. Volto a “incomodá-lo” minutos depois pois há que saldar o custo do visto, 94 dólares, antes da sua emissão. Disto me informa um sujeito com ar de professor do secundário, muito mais cordial do que os colegas, estrategicamente posicionado em frente a um terceiro e definitivo guiché. Efectuado o pagamento, atenciosamente recebe o meu passaporte e junta-o aos documentos dos outros cinco estrangeiros ali presentes. Nada de perguntas, nada de reservas de hotel, nada de cartas-convite, nada de percurso pré-definido. Apenas nos pede que nos sentemos numas cadeiras ao lado de uma outra sala onde duas funcionárias tagarelam animadamente. Entretanto, passa um homem bonacheirão com uma garrafa de termos na mão e ar de quem tinha acabado de cear. Como se vê, o ambiente é descontraído, embora o relógio se aproxime das duas da manhã e não se consiga perceber o porquê da demora. À nossa disposição, e para ajudar a passar o tempo, água fresca e uma casa de banho limpíssima, um e outro sinais civilizacionais dos quais não prescindo. À espera, um casal de meia-idade, uma japonesa, uma caucasiana de nacionalidade indefinida e uma holandesa em trânsito para Amesterdão que não entende o porquê da sua presença se tudo o que necessita é de uma simples mudança de voo. Uns quarenta e cinco minutos depois, são-nos entregues os passaportes, a mim e à japonesa, mas sem qualquer visto-autocolante, como seria de esperar. Transposta a fronteira é-nos colocado o carimbo, em alfabeto persa, que nos dá direito a trinta dias de estada. O meu surge ao lado do de Marrocos, questão de solidariedade islâmica, presumo.

O inusitado movimento nos átrios de chegada e de partida com que nos deparamos prolongar-se-á toda a noite, dando a entender que é essa a altura de maior movimento no aeroporto. Serve este banho de multidão de momento de reencontro. Visitei o Irão pela primeira vez em 1988, poucos meses antes do final do terrível conflito militar com o vizinho Iraque que resultaria em mais de um milhão de mortos, e ao Irão voltaria (apenas a Ormuz, e por cinco dias apenas) em 2008, no âmbito do projecto Sete Maravilhas de Origem Portuguesa. Eis-me agora face a um dos mais variados e impressionantes mosaicos étnicos. O Irão é hoje um país pujante e moderno habitado por gente afável e hospitaleira. Infelizmente, não o retratam assim os cineastas de referência que tantas vezes vêem os seus filmes premiados nos festivais de cinema internacionais. Merecem os galardões, sem dúvida, mas o Irão que revelam ao mundo é, geralmente, apenas uma das faces da moeda. Tenho para mim que insistem em ser demasiado duros consigo próprios.

Joaquim Magalhães de Castro

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