Uma estátua para o Fernão
Visitada a joia da coroa da cidade de Cebu, estugo o passo em direcção ao porto para finalmente poder olhar esse outro estreito por onde entrou Magalhães e os seus homens no distante ano de 1521, a partir de uma frente marítima reclamada ao mar onde assenta agora uma escola, os correios e, claro, os diversos cais donde regularmente partem “ferries” para Bohol e demais ilhas a sul.
Antecede o baluarte de San Pedro, onde outrora vinham as marés espreitar, um jardim no qual em 1855 (reinado de Isabel II – administrava então esse quinhão da colónia espanhola D. Rafael Cerveró y Valdés) foi erguida uma coluna (que quase é obelisco) com um esfera armilar no topo com uma dedicatória ao “primer gobernador de estas islas e fundador de esta ciudad”, ou seja, Miguel López de Legazpi, que tem também direito a estátua, se bem que algo tosca, de cimento e já fragmentada, em frente ao bastião leste, o da Nossa Senhora da Conceição.
Como sempre faço antes de entrar numa fortaleza, percorro todo o perímetro da San Pedro e no processo deparo com a vistosa estátua de bronze de Antonio Pigafetta de pena em punho, iniciativa da associação italo-filipina carimbada em 1980 que assim prestou tributo a esse seu “patrício de Vicenza e cavaleiro de Malta, cronista da expedição de Magalhães que circum-navegou o globo de 1519 a 1522, lutou em Mactan e foi um dos 22 sobreviventes regressados a Espanha”. Afinal, ainda há quem recorde os seus! Os italianos neste caso; os espanhóis no que concerne a Legazpi; e os filipinos em relação a Lapu-Lapu, também merecedor de memorial, uns quarteirões mais a sul.
Quanto a um Magalhães fora da tela ou da toponímia, por enquanto, não há quaisquer sinais de fumaça. Ainda cheguei a pensar que no jardim que ostenta o seu nome houvesse por lá uma estatuazita, um memorial, sei lá, um painel com alguns dados biográficos a seu respeito. Enganei-me. Mas não perdi a esperança. “Pode ser que no interior do forte tenha uma surpresa”, pensei ao entrar na San Pedro. Guarda esta fortificação datada de 1565 – que os espanhóis, talvez para realçar a sua função bélica, dissuasora, portanto, denominam de Fuerza de San Pedro – um gato com heterecromia (um olho azul e outro verde) e com aspecto de ali estar apenas para ser fotografado. Por cima do portão de entrada, “reformado em 1833, sendo alcaide Don Manuel Romero”, acolhido num nicho, um pequeno Santo Niño bendiz quem acede o umbral protector de várias imagens alusivas à fundação da cidade. No espaço que medeia a casa do corpo da guarda inserida na muralha e a vivenda “del teniente”, uma réplica da Nossa Senhora de La Coota (virgem dos Remédios), a segunda mais antiga estátua da Virgem Maria encontrada nas Filipinas, mantém-se ali envidraçada, exuberante no seu manto vermelho e azul inteiramente debruado a dourado; e mesmo ao lado, o Pozo de La Virgen recebe as moedas que os visitantes lhe atiram.
O recheio do fortim (neste caso, a falta dele) é uma decepção. O piso térreo da casa do corpo da guarda é inteiramente reservado ao conhecido artista plástico cebuano Manuel Pañares, que nos fornece um olhar mais nativo dos acontecimentos, conveniente contraponto ao teor hagiológico das pinturas presentes na basílica. Não surpreende a postura, até porque são visíveis no fácies do pintor os genes malaios presentes na esmagadora maioria dos filipinos. Não vou discutir a qualidade dos seus trabalhos, mas desde já asseguro que não lhe ficam atrás, no engenho, as pinturas do ilustre desconhecido J. Gonzalve.
Na parede principal estão expostas umas quantas fotocópias coloridas das telas originais. O centro é ocupado pelo rajá Humabom de braços tatuados cruzados, faixa vermelha em redor da cabeça e barriga proeminente. Em baixo, também ao centro, a rainha Juana admira, de olhar extasiado, a imagem do Santo Niño. Fernão surge no lado direito, alto, hirto, cabelo e barba louras e olhos azuis – pois assim o imaginou Pañares –, envergando armadura de gala. Acompanha-o uma abonatória legenda: “Fernando de Magalhães o explorador que colocou as Filipinas no mapa da história do mundo”. A seu lado, Lapu-Lapu, rei de Mactan. Tem o tronco e os braços tatuados e um aspecto tremendamente desafiador. Em baixo, em jeito de resumo, está retratado o momento em que o navegador português é morto pelo cebuano. À esquerda do rajá temos um Antonio Pigafetta, também de olhos claros, numa pose efeminada que de imediato me fez lembrar a infeliz estátua de Luís de Camões no cimo do Jardim do Carmo, na Taipa. Pañares não se esquece de Henrique de Malaca e até lhe dá um ar de personagem de romance de Emilio Salgari. Aliás, o estilo do pintor cebuano remete-nos constantemente para o universo da banda desenhada. Ao escravo do almirante português e primeiro homem, de facto, a circum-navegar o planeta, Pañares designa de “intérprete de Magalhanes”.
Enfim, Magalhães aparece em todas as formas e feitios – como ele era na realidade ou como os outros o imaginaram –, mas a verdade é que não tem em Cebu uma única estátua, apesar de ser o personagem histórico mais conhecido e mais mencionado. Pode ser que com a efeméride dos quinhentos anos alguém se lembre de o prendar com aquilo a que tem direito. Pode ser.
Joaquim Magalhães de Castro