Mártires no Norte do Japão
Mesmo correndo o risco de fugirmos à temática desta série de crónicas achamos importante referir aqui o cruel destino reservado a Jerónimo de Angelis e a Diogo de Carvalho. Ambos martirizados em nome da fé que professavam, merecendo por isso a beatificação do Papa Pio IX, a 22 de Julho de 1867. Vamos então ao último capítulo das suas vidas.
Como já aqui foi dito, entre 1623 e 1624 a Cristandade da região de Hokkaido foi alvo de severa perseguição, projectando-se assim no Norte do arquipélago o que previamente acontecera no Sul. Jerónimo de Angelis, agora na clandestinidade, cedo constatou que a sua presença e o seu proselitismo prejudicavam seriamente os neófitos e por isso decidiu entregar-se às autoridades que o enviaram para Edo com este cruel libelo: condenação à morte. Na manhã de 4 de Dezembro de 1623, ele e cinquenta outros prisioneiros saíram do calabouço onde penavam e, como era hábito, foram conduzidos numa longa procissão através dos bairros mais animados da cidade até ao local de execução. Angelis, o frade espanhol Galvez e um padre japonês, montados a cavalo, lideravam o grupo de cristãos ladeados por soldados armados com lanças.
A data não fora escolhida ao acaso: encontravam-se então reunidos na capital do império um grande número de senhores feudais, que assim se dissuadiam de qualquer futura simpatia pela fé dos nanban que tanta gente seduzira. Terá sido essa, aliás, a razão pela qual não fora escolhido o local de execução habitual, em Asakusa, antes um agradável descampado junto a uma colina arborizada onde os residentes passavam os tempos livres. Pretendia a autoridade congregar o maior número possível de espectadores para assistir ao tremendo acto. Amarrados a postes de madeira, os condenados sucumbiram, uns após os outros, vítimas das labaredas das cinquenta fogueiras que nessa tarde foram acesas; e isto, sob o olhar dos três padres obrigados a assistir ao suplício do seu rebanho antes da própria execução.
Não tardaria a chegar também a hora de Diogo de Carvalho, refugiado nas montanhas na companhia de onze cristãos. Denunciaram-nos as pegadas na neve que certo dia caíra com mais intensidade, e não tardaria a que os capturassem os esbirros do damio de Sendai. O método de execução escolhido foi, em vez da habitual fogueira, tanques de água gelada, pois estávamos em pleno Inverno. O procedimento, faseado, duraria quatro dias – queriam forçar os fiéis a abandonar a sua fé, mas sem sucesso. Os cristãos foram morrendo um a um e o padre Diogo sempre os animava com palavras de fé. No dia 22 de Fevereiro de 1624 padeceria ele próprio dez horas de martírio nas águas geladas tendo entregado, também ele, a alma ao Criador. O seu corpo foi desmembrado e atirado ao rio, estando a cabeça deste mártir ainda hoje preservada como relíquia.
Eis uma breve narração coeva das últimas horas do missionário: “Depois de três horas deste cruel tormento [o ‘regelo’], os tiraram do lago com grande trabalho por estarem enregelados. Os mais se estenderam sobre a areia para tomarem algum alívio; porém o Padre se assentou sobre os pés cruzados, compôs as mãos diante do peito e se pôs em oração. Estando o Padre naquele belo sossego de sua alma, se chegou a ele um moço do Governador e lhe disse ‘Estes tormentos te deu o Governador por seres cristão; mas se queres deixar de o ser, ele te oferece a vida’. ‘Nem quero nem posso’, respondeu o Padre, ‘negar a quem reconheço por Senhor de tudo, nem deixar a sua lei em que só há salvação’. E acrescentou: ‘Enquanto viver tal coisa não farei; antes os persuadirei sempre a dar as vidas por Cristo’. ‘Cometeste nisto’, replicou o bárbaro, ‘um grande pecado, por haver recusado obedecer ao Xógum, e por tal culpa vos há-de moer a todos’. ‘Pecado’, disse o Padre, ‘cometeria eu, se lhes aconselhasse o contrário, porque é coisa santa não obedecer aos homens quando mandam alguma coisa contra Deus’. ‘E se te atormentassem de novo’, disse o gentio, ‘e te queimarem vivo, não mudarás essa teima?’. ‘Se me queimarem vivo’, respondeu o Padre, ‘por não deixar a fé que ensino, o terei a grande beneficio de Deus’. Foram então levados ao tribunal, onde todos confessaram a sua fé em Cristo e afirmaram não poderem renegar a fé, pois respeitavam mais Deus que os homens. Ameaçados com o serem lançados à fogueira, todos disseram ser para eles um grande benefício de Deus. Chegados os vinte e dois dias [de Fevereiro], depois do meio-dia, foram tirados da prisão, tendo para si que seriam queimados vivos; mas os gentios os tornaram a meter no mesmo lago, atados aos paus como antes”.
A partir dos relatos destes dois mártires jesuítas, podemos concluir que os ainu de Hokkaido do início do século XVII estavam envolvidos numa fértil actividade comercial, fosse com os ainu de Sakhalin, ilha ao norte, ou com os ainu das Curilas, cordão de ilhas que se estende a Leste. E é para essas ilhas que prosseguimos, à boleia dos navios comandados por dom João da Gama.
Joaquim Magalhães de Castro