ILHAS DE SÃO LÁZARO – 17

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 17

As broas de Baclayon

Todos garantem que saudades deixou aos visitantes lusitanos, entretanto de novo no mar, aquele rei bondoso e a sua gente. Cedo, ao longo da ilha de Mindanau, se avistaria nova ilha: Soligão, Seligano ou Soligano, consoante o escritor, e que possivelmente corresponde à nossa já conhecida ilha de Siargao. Também o rei local se converteu, assumindo o nome cristão António Galvão, assim como a rainha, duas das suas filhas e muitas outras pessoas; e nesta matéria todos estão de acordo. Castanheda fala-nos em 150 pessoas; Couto reduz o número de neófitos para sessenta, “pessoas de sua casa”, ou seja, da família real. O processo de missionação prosseguia. Outros três reis de outras tantas ilhas vizinhas abraçariam a Fé Cristã e adoptariam prenomes lusíadas. Diogo do Couto garante que todos passaram a chamar-se “D. João de Portugal, em cujo tempo se converteram estas ilhas”; asseguram Lavanha e Castanheda que o soberano da ilha de Camiguin levou o nome de Francisco e não João, esse reservado aos donos das duas outras ilhas, neste caso acrescido do cognome “O Grande”, lembrando-nos ainda, os mencionados cronistas, que receberam também baptismo as respectivas mulheres, filhos e irmãos, e grande parte dos seus vassalos, destrinçando Castanheda, neste particular, “assim de nobres como do povo”.

Também no nome das ilhas próximas há divergências: Butuão (ou Butuano), ilhéu na baía com o mesmo nome; Pimilara (ou Pumilarano), na baía de Dumankilas; e Camiguin (ou Camisino), local não identificado. A respeito das mesmas, lembra Couto que seriam redescobertas em 1543 pelo navegador Bernardo de la Torre (como vimos na crónica anterior), mas de nada serviu a advertência pois é ao espanhol que hoje atribuem a descoberta de Siargao e o nome de Francisco de Castro, o verdadeiro descobridor, é ignorado. Daquelas paragens quis o emissário de Galvão ir até Mindanau, mas ventos contrários muito fortes impediram-no do intento e ele decidiu regressar a Ternate, “depois de alguns meses naquela santa obra”, lembrando Lavanha e Castanheda que levou com ele “muitos filhos daqueles que se tornaram cristãos, para lhes ser ensinada a doutrina cristã e a nossa língua, o que António Galvão fazia com grande cuidado”.

A leituras destas me entrego enquanto aguardo a partida do “ferry” com destino a Bohol, espantado (ou nem por isso) com a quantidade de turistas chineses e coreanos que atulham a sala de espera do concorrido terminal. Ao longo do trajecto nunca se deixa de avistar terra, e duas horas depois estou já em Tagbilaran City, o mais significativo aglomerado populacional da ilha, enfiado num dessas engenhosas motorizadas feitas “sidecars” (ou triciclos, depende da perspectiva), com espaço para a bagagem na traseira, e que a toda brida me leva à praia de Alona, a mais badalada de Panglao, ilhota separada de Bohol por um bonito canal marítimo. De Tagbilaran avisto apenas, e por breves segundos, o vulto da igreja, entre o casario e o aperto de centenas de outros “moto-sidecars”, sem dúvida o meio de transporte preferencial destas bandas. Autocarros? Nem vê-los. Uns dias depois, resolvido a desvendar recantos que só um motociclo permite, faço uma paragem em Baclayon, a sete quilómetros de Tagbilaran. Fundada pelos jesuítas Juan de Torres e Gabriel Sánchez em 1596, “por solicitação de Dona Catalina de Bolaños, mãe do encomendero de Bohol, Pedro de Gamboa”, a igreja da Imaculada Conceição Virgem Maria é, aparentemente, o local com mais interesse histórico e, seguramente, o mais antigo assentamento cristão em Bohol. O actual edifício cruciforme encimado por uma parede piramidal, feito com pedras de coral, foi concluído em 1727, encarregando-se dela (após a expulsão dos jesuítas, em 1768) os agostinhos recoletos, que lhe foram fazendo as sempre necessárias renovações. No interior, um dos três retábulos, o maior e principal, retém a inscrição do lema dos jesuítas, “Ad Maiorem Dei Gloriam”, e as imagens dos séculos XVIII e XIX de São José, Santíssima Trindade, São Miguel e São Gabriel, Santa Ana e São Joaquim, e, claro, da padroeira, a Imaculada Conceição, embelezadoras do espaço. Estrategicamente localizado frente ao mar, rodeavam o templo original muros de pedra defensivos; removidos na década de 1870, à excepção de um bastião, o remanescente da antiga fortificação.

Outros sinais das renovações dominicanas são o edifício escolar e um mercado de madeira e pedra, anexos ao templo, e o ferro galvanizado que em 1893 substituiu o tecto original. Ajudaram certamente estas inovações à obtenção do “estatuto de tesouro cultural” e pesam agora na candidatura integrada – com as igrejas de Loboc (ali próxima), a de Maragondon (em Cavite), e a de Guiuan (na ilha de Samar), as ditas “Igrejas Jesuítas das Filipinas” – a Património Mundial da UNESCO, galardão mais do que merecido, diga-se de passagem, sobretudo após os esforços de recuperação na sequência do terrível terramoto de 2013, que devastou Bohol e outras partes das Visayas Centrais. No seu todo, mas com especial incidência no pórtico, a igreja sofreu grandes danos e a torre sineira colapsou. Igual sorte tiveram outras igrejas centenárias da ilha, nomeadamente a de Loboc, seriamente danificada e agora em fase de restauro, como pude comprovar nesse meu breve périplo.

Em 1872, a igreja da Imaculada Conceição Virgem Maria seria expandida para nela se integrar um convento, hoje usado como museu eclesiástico, infelizmente encerrado aquando da minha passagem. Nos fornos de uma padaria ali perto coziam-se as reputadas “broas de Baclayon”, versão filipina do internacionalíssimo “biscoito de champanhe”, e cuja tradição remonta ao período colonial. Consta que os espanhóis para não desperdiçar as gemas dos ovos que usavam na construção (as claras de ovos eram utilizadas como ligamento da argamassa) ensinaram os locais a fazer esse e outros tipos de doces. O estranho nisto tudo é que se chame “broa” – vocábulo nitidamente português – a um doce com aquelas características. Doces, só mesmo as broas-de-mel.

Joaquim Magalhães de Castro

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