ILHAS DE SÃO LÁZARO – 1

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 1

O quiosque e a cruz

A escassos meses do início das comemorações que assinalam os 500 anos da viagem de circum-navegação levada a cabo por Fernão de Magalhães, decido revisitar Cebu e voltar a ver a cruz que ele ali implantou e a estátua do Jesus menino que, rezam os anais, por sua ordem foi parar às mãos de uma rainha local e hoje orgulhosamente é exibida numa ala lateral da basílica do Santo Niño, provavelmente o sítio mais religioso das Filipinas.

Começaria por dizer que o novo terminal do aeroporto internacional de Mactan (ilha vizinha a Cebu) cheira ainda a tinta de tão novo que é, não fosse ele, na sua estrutura abobadada, uma obra de arte em formato de madeira. É, como diriam os filipinos, recorrendo a um vocábulo que nós ou os “nuestros hermanos” lhes legaram, uma bela “prenda” para a vista, muito provavelmente inspirada nos tectos das catedrais.

Confortavelmente acomodado no “MyBus” e preparado para o mais do que previsível congestionamento automobilístico, deleito-me com os agora reencontrados e sempre imaginativos “jeepneys”. A derradeira paragem é no principal “mall” da cidade, pois que outro sítio queriam que fosse? Primeira impressão: o aspecto degradado do tecido urbano e a aparente ausência de edifícios coloniais de relevo. Mas, alto lá; estamos ainda na rua Sanciengko, onde a hospedagem comum não contempla pequenos-almoços mas deixa-nos relativamente perto do centro. E o que não falta em Sanciengko são “eateries” e churrasqueiras a alourarem o “lechón” e o frango para todos os gostos. A água, para os mais conscienciosos nestas questões do ambiente, pode ser comprada a avulso, mas só aceitam as velhas máquinas que armazenam moedas de um peso. No que me diz respeito, estou servido. Prefiro mil vezes qualquer uma dessas cantinas improvisadas, quase sempre com comida caseira que se não for requentada é muito saborosamente comestível, do que a alternativa ianque das hamburguesas, pizzas e quejandos.

Na manhã seguinte, bem cedo, reconfortado o bucho, é só seguir pela Borromeo abaixo, agradado desde logo com as belíssimas fachadas de madeira de algum do casario tradicional sobrevivente e surpreendido com o imponente edifício azul celeste do retalhista Hy Trading, mescla de traça colonial com arte nova, exibindo em estuque de alto-relevo, nos frisos e no topo da fachada, os compassos e o esquadros maçónicos. O local seguramente foi, ou é ainda, sede de uma importante loja de auto-proclamados pedreiros-livres.

Insiste a Borromeo em mostrar-me alguns outros vistosos edifícios, sempre com corredores e arcadas onde se abriga do intenso calor copiosa estirpe humana que encontra ali também espaço para a diária sobrevivência. A ligá-los, um emaranhado de cabos eléctricos e cabos telefónicos que se vão entrecruzando até a mencionada artéria deparar com a Magallanes Street, a primeira evocação toponímica ao bravo navegador e onde o Philtrust Bank, com guarda à porta, como convém, conta com filial: a Magallanes Branch. E já vão duas referências ao homem de Sabrosa! É curioso, apesar das várias dependências bancárias ali presentes nem imaginam o que eu passei para poder trocar as minhas verdes de 50 e 100 pelos matizados pesos com vários zeros à direita! Era como se não transitassem diariamente por esta cidade centenas e centenas de turistas, habitualmente com destino marcado para as ilhas mais a sul, é certo, mas que acabam por fazer uma pernoita que seja.

Assinala a praça mesmo em frente ao prédio da City Hall, vigiado por figuras gradas da política caseira – Sergio Osmeña, Vicente Rada e Jose Rizal –, a mais antiga reminiscência histórica da presença europeia no arquipélago: um singelo edifício de pedra e telha em forma de quiosque (assim mesmo o denominam) onde é guardada a mais sacra cruz do arquipélago. Segundo nos diz uma placa envergonhada, o dito quiosque deve o seu aspecto assim arranjadinho à Fundação Calouste Gulbenkian, que a expensas suas o reabilitou a 9 de Junho de 2006. E já agora, permitam-me o desabafo: o que restaria da nossa memória e património pelo mundo se não fosse a instituição criada com o dinheiro desse filantropo arménio feito de corpo e alma português?

No interior do quiosque dispõem-se duas mulherzinhas de faixa carmesim a tiracolo, a troco de uns quantos pesos, a queimar velas e a rezar pelos nossos entes queridos em frente da cruz de madeira de tindalo. Esta tem encastoada a original que em 1521 Magalhães e os seus correligionários ergueram em solo nativo. Terá sido este o exacto local, a acreditar na informação disponibilizada numa placa de mármore e o largo debuxo de tons pastel pintado no tecto côncavo. Na verdade, são dois quadros distintos e que se complementam, pois evocam os momentos mais importantes da chegada da expedição espanhola às ilhas que Magalhães dedicaria a São Lázaro. No primeiro plano vemos o capitão-mor português de braços cruzados atrás do padre Pedro Valderrama, este empunhando uma bíblia aberta, e ao lado de Fernão um Pigafetta de basta barba, ajoelhado, pronto a anotar o acontecimento, enquanto em frente dois nativos escoram com pedras a agora afamada cruz. Outras personagens figuram no quadro: cebuanos e soldados em pé, estes com estandartes e de armadura inteira; outros ajoelhados junto a mais alguns indígenas. Também ajoelhado, ao lado do padre, um marinheiro segura nas mãos um incensório. Como pano de fundo, a baía e as naus nela ancoradas. No segundo quadro, oposto ao primeiro, a figura central continua ser a do padre Valderrama, desta feita a baptizar Humabon, rei de Cebu, a rainha, filho e filhas, e alguns dos trezentos súbditos que alegadamente receberiam a Fé Cristã nessa cerimónia. Ao lado do padre está um grupo de espanhóis e atrás, num altar, a imagem do Santo Niño mais tarde oferecida à mulher do régulo de Cebu.

Joaquim Magalhães de Castro

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