IGREJA DE SANTA CRUZ EM BANGUECOQUE

IGREJA DE SANTA CRUZ EM BANGUECOQUE

Kudi Chin, a “igreja dos chineses”

Era ao longo das margens do rio Chao Phraya, verdadeiro coração e artéria principal da cidade de Banguecoque que, em tempos não muito remotos, tudo acontecia: da azáfama dos mercados fluviais às manifestações culturais e religiosas, pois navegando nele se chegava aos principais templos e palácios da urbe siamesa. Não surpreende, pois, que todos quisessem aí estabelecer residência. Tal aconteceria com a comunidade luso-thai vinda de um reino em colapso (Ayutthaya, 1767) e que desde os primórdios do Século XVI firmara um tratado com o soberano local, fornecendo-lhe armas de fogo e conhecimento militar a troco do direito de aí viver, procriar e livremente praticar o seu culto. O Catolicismo nascente sobreviveria no Sião graças aos casamentos entre esses homens de armas e as mulheres locais, que adoptavam a religião dos maridos e a legavam aos filhos. Fiéis até ao fim, acompanhariam esses mercenários o rei Taksin até à nova capital, Banguecoque, onde lhes foram atribuídas terras para reconstruir as suas vidas. Em Santa Cruz (Thonburi), uma das quatro paróquias da capital tailandesa, vivem hoje muitos dos descendentes dessa gente, que no Século XVII chegaram a totalizar quatro milhares de almas.

«Quando chegaram os protuket, existia aqui uma comunidade chinesa de carácter fortemente mercantil. Com eles de imediato passaram os protuket a interagir, assegurando assim a sua sobrevivência», diz-me Anucha Predee, um destacado membro da comunidade local, sacristão, mestre-escola de profissão e fruto desse encontro sino-luso-siamês. «O pragmatismo dos chineses levou-os a escolher este local pois nele moravam os funcionários do Governo responsáveis pelo comércio internacional».

O Rosário que Predee segura nas mãos e desfia com enlevo identifica-o como católico; quanto ao seu fácies, revela bem a mistura de sangue asiático e europeu. Esse contacto étnico tripartido transpareceria também no aspecto geral da igreja aí edificada por volta de 1770 – «com clara influência arquitectónica chinesa» –, daí ter passado a ser conhecido todo o bairro como Kudi Chin, ou seja, “bairro da igreja chinesa”. Dele, para quem navegue no rio Chao Phraya, sobressai a cúpula avermelhada da igreja de Santa Cruz, «uma das principais da capital tailandesa», sede do Vicariato Apostólico do Sião até 1821, altura em que foi erguida a hoje bem mais conhecida Catedral da Assumpção. Em boa verdade, até então, não tinham conseguido os padres franceses da Missão Estrangeira de Paris (que vieram substituir na totalidade os religiosos do Padroado Português do Oriente) qualquer conversão entre os locais. Ou seja, e como refere Anucha Predee, «a sobrevivência, e até crescimento, do Catolicismo, resulta tão-só de uma tradição familiar perpetuada ao longo dos séculos entre os protuket», isto é, luso-descendentes. A igreja de Santa Cruz sofreria obras de restauro em duas ocasiões. A primeira, em 1835, e a segunda em 1916, durante o reinado de Rama VI (1910-1925). Desta feita, com a prestigiada assinatura dos arquitectos italianos Annibale Rigotti e Mario Tamagno, responsáveis pelo estilo renascentista e neoclássico, elementos decorativos rivalizam em beleza com as cenas bíblicas dos vitrais. No exterior, a habitual gruta com a estátua da Virgem Maria com o Menino ao colo e um pequeno cemitério onde em lápides de mármore se eterniza a memória dos antigos párocos. À semelhança das demais igrejas católicas tailandesas, também à igreja de Santa Cruz foram associadas duas escolas: a escola Santa Cruz Suksa e a escola do Convento de Santa Cruz.

A 14 de Setembro celebram os católicos locais a sua festividade mais querida: a Festa do Triunfo da Santa Cruz. Nesse dia, em 336 d.C., Santa Helena, mãe de Constantino, o primeiro imperador cristão, fez uma descoberta milagrosa da Santa Cruz no decorrer de uma peregrinação a Jerusalém. «Devia visitar-nos nesta altura», sugere Anucha Predee. «Além de poder comprovar a devoção da nossa comunidade, poderá degustar muitos dos nossos pratos tradicionais». O simpático sacristão menciona o «caril de frango à portuguesa» e os pastéis de nata, mas sobretudo o “khanom farang kudi chin”, um bolo típico criado pelos portugueses na época áurea de Ayutthaya, durante o reinado do rei Narai (1633-1688). Actualmente, ao que consta, apenas três famílias em toda a Tailândia conseguem confeccionar esse tipo de bolo coberto com passas, considerado como «uma sobremesa única da comunidade de Kudi Chin», embora possa ser facilmente encontrado «nos mercados de Bang Lamphu ou Wang Lang», como informa o meu interlocutor. «Se falar com as pessoas em Banguecoque, provavelmente dir-lhe-ão que a igreja de Santa Cruz e o khanom farang kudi chin são tudo o que resta da influência lusitana em Banguecoque, esquecendo-se do mais importante: nós, os orgulhosos descendentes dos protuket que serviram os nossos reis em Ayutthaya», lembra Anucha Predee.

Joaquim Magalhães de Castro

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