«Para qualquer doença há estudos genéticos em marcha».
Formado em genética na cidade de Londres, Gonçalo Rocha Abecasis, antigo residente de Macau, liderou durante vários anos uma equipa de cinco outros jovens cientistas, na Universidade de Michigan, Ann Arbor, Estados Unidos, e foi responsável por um revolucionário programa informático que permite aos investigadores recolher enormes quantidades de informação genética num maior número possível de indivíduos. Em 2009, Abecasis acabaria por ser convidado para o corpo docente desse mesmo estabelecimento de ensino, na sequência da obtenção, no ano anterior, do prémio de excelência na área da pesquisa concedido pela Escola de Saúde Pública dessa instituição. Quatro anos antes, em 2005, fora nomeado Pew Scholar pelo Pew Charitable Trusts.
O seu trabalho viria a ser mencionado, em 2010, pelo vice-Presidente Joe Biden num discurso acerca da importância da investigação biomédica no âmbito do Recovery Act Innovation Report, e, em 2013, o cientista português obteria o prémio Overton da Sociedade Internacional de Biologia Computacional, tendo feito o discurso de abertura no ISMB (International Society for Computational Biology). Em Outubro de 2014, recebeu o Prémio Curt Stern, na área de genética humana, atribuído pela Sociedade Americana de Genética Humana (em conjunto com Mark J. Daly), e nesse mesmo mês seria eleito membro do Instituto de Medicina, organização não-governamental norte-americana. O trabalho publicado de Gonçalo Abecasis, mais do que respeitado pela comunidade científica, é, sobretudo, bastante influente – até 2011, tinha já um “h-index” de 69 e os seus 184 artigos tinha merecido 26 mil 910 citações.
Nascido em Moura, no Alentejo, em 1976, Gonçalo Abecasis fez os estudos secundários em Macau, onde residiu de 1987 a 1994. A informática e a medicina não lhe pareciam matérias muito aliciantes, e na altura (1994) em Portugal não havia qualquer curso de genética. «Chegava-se à genética fazendo-se um curso de bioquímica de cinco anos e um mestrado de dois anos em genética», diz ele. Mas… «sete anos é muito tempo». Em Londres, três anos eram suficientes para uma licenciatura. Gonçalo fez aí também um doutoramento, «que correu muito bem» e que resultou em sete convites para ir trabalhar para os Estados Unidos. Abecasis esclarece: «o doutoramente consiste em fazer um projecto de investigação e publicar os resultados e, se fizeres descobertas interessantes, convidam-te para voos mais altos».
O CLARIM – E que descoberta foi essa que fez o Gonçalo Abecasis?
GONÇALO ABECASIS – Desenvolvi uma aplicação de software, que designei por Merlin, oficialmente lançada em 2002, que permite analisar dados genéticos em grande escala. Anteriormente, com alguns marcadores genéticos os cientistas podiam medir apenas grandes quantidades de DNA e estabelecer tabelas comparativas no interior de pequenos grupos de indivíduos com os mesmos laços familiares. Agora, com um grande número de marcadores genéticos à disposição, os investigadores podem caracterizar o genoma individual de cada um com grande detalhe e examinar pormenorizadamente fragmentos de DNA partilhados por milhares de pessoas sem qualquer ligação familiar. Ainda há vinte anos um estudo típico de genética olhava para dez marcadores genéticos em cada indivíduo. Há dez anos, eram já duzentos os marcadores observados. Hoje em dia estamos a olhar para 50 mil marcadores num único indivíduo. Nos próximos dois anos, as novas tecnologias de genética permitirão que nos confrontemos com vários milhões desses marcadores.
CL – E essa aplicação tem sido muito utilizada…
G.A. – A aplicação Merlin foi já usada em mais de uma centena de estudos para as doenças mais variadas. Especificamente, utilizei-a para estudar a degeneração macular, que é uma causa de cegueira algo comum em pessoas na casa dos cinquenta e sessenta anos. É um processo por etapas. Começa-se por isolar todos os genes, sendo a lista depois reduzida progressivamente até termos um lista pequena, ficando devidamente isolados um ou vários genes específicos que sabemos de antemão terem um impacto muito grande na doença. Só então se pode pensar em desenvolver medicamentos e tratamentos específicos. A parte do trabalho que me compete é precisamente esse processo de afunilar a lista de genes. A minha equipa está a trabalhar nisso há seis anos. Temos resultados intermédios há dois ou três, mas ainda não obtivemos um resultado que nos permita afirmar que podemos desenvolver um medicamento específico para esta doença.
CL – Mas o que é exactamente isso de um marcador genético?
G.A. – Um marcador genético é uma porção de DNA que varia de indivíduo para indivíduo e que pode ser utilizado para distinguir cromossomas ou parte de cromossomas. Por exemplo, é possível usar um marcador de DNA para saber se, para um gene específico, existe a cópia que vem da avó materna ou do avô paterno, e poder, desse modo, seguir o trajecto de determinado fragmento de DNA dentro de uma família. Com o nosso método é agora possível seguir o trajecto de um fragmento de DNA dentro de uma população maior. É como estarmos perante fotografias de baixa ou de alta resolução. Nós trabalhamos em alta resolução e por isso podemos encontrar o detalhe, o que não é óbvio e que só com a aproximação, como a que nos permite um zoom de uma câmara fotográfica, se consegue vislumbrar. No fundo, estamos a procurar as sequências de DNA que são variáveis. Convém não esquecer que 99, 9 por cento do DNA é exactamente igual em todos os indivíduos. O tal 0,1 por cento é essa porção de DNA que varia e que nos distingue e que constitui os tais marcadores genéticos.
CL – Foi professor assistente de bioestatística…
G.A. – Sim. Estive à frente de uma equipa internacional de cinco pessoas que essencialmente desenvolve modelos matemáticos. Aqueles que consideramos mais interessantes são depois implementados nesse software por nós desenvolvido e usado nos nossos laboratórios, talvez uns oitocentos, espalhados por todo o mundo. A razão da minha deslocação a Hong Kong deve-se ao facto de alguns colegas da universidade local estarem a utilizar o Merlin para os estudos deles em diversas doenças. Estive lá para me certificar das dificuldades com que se confrontam, e para me inteirar dos aspectos que seria interessante acrescentar. Nos últimos quatro anos temos vindo a fazer descobertas aproximadas. É um trabalho quase infinito, se bem que um dia se chegará a um ponto em que todo o pormenor do marcador genético será revelado. Mas ainda estamos longe disso.
CL – Como se processa toda essa informação?
G.A. – Hoje em dia é muita a informação que se recolhe no decorrer dos estudos de genética e de biologia. Compete à matemática e à estatística sumarizar todos esses dados. As medições que se fazem nestas ciências não são exactas. Há que conseguir colocar as peças todas e depois construir uma imagem do que é que realmente se está a passar. Por exemplo, não é possível medir o DNA directamente. Ou seja, medem-se outras coisas que indirectamente estão relacionadas com o DNA. Só depois se pode tentar reconstruir qual seria o DNA de determinada pessoa ou de determinado animal ou de outra forma de vida com que se esteja a lidar.
CL – O seu papel é mais de matemático ou mais de biólogo?
G.A. – É dos dois. De biólogo, pois o que faço são modelos baseados em biologia. Uso depois fórmulas matemáticas, uso computadores para tentar transformar esses modelos nalguma coisa interessante ou coerente. A outra parte da experiência é feita em laboratório. Esse é um trabalho que compete aos meus colaboradores. Eu não disponho de um laboratório no estrito sentido, mas antes de um laboratório de informática.
CL – Qual é a importância, o fundamento deste seu trabalho?
G.A. – É o de tentar perceber quais são os genes, e os genes levam-te às proteínas, levam-te aos processos biológicos que contribuem para as doenças comuns, às quais chamamos também doenças completas. Maleitas como a diabetes, a asma, a esquizofrenia, que afectam uma elevada percentagem da população mundial. Quando foram iniciados os estudos genéticos as pessoas trabalhavam em coisas como a fibrose cística e outras anomalias genéticas muito óbvias que se manifestavam logo à nascença.
CL – Doenças mais raras, portanto…
G.A. – Sim, estamos a falar de uma pessoa em dez mil ou em cinquenta mil. O diabetes, pelo contrário, é muito comum. Nos Estados Unidos dez por cento da população é diabética. Para além de comum, é também uma doença mais complicada pois não é só um, mas sim vários genes que falham. Não se pode dizer que uma pessoa tem diabetes à nascença. No caso, não só temos de ter em conta os mecanismos ambientais, o modo de vida, a dieta alimentar, mas também a existência de genes múltiplos. Por um lado, é mais interessante sob o ponto de vista da investigação, já que afecta um maior número de pessoas, por outro, é mais complicado, porque em vez de ser só um, são vários os genes que contribuem para o evoluir de determinada doença. A ideia do nosso trabalho é: se conseguirmos identificar o gene podemos perceber melhor quais são os mecanismos biológicos e bioquímicos que levam ao desenvolvimento da doença, e isso há-de nos ajudar a desenvolver medicamentos para o tratamento da mesma.
CL – Como é que surgiu todo este projecto?
G.A. – Este projecto específico surgiu para ajudar a combater doenças muito generalizadas, como é o caso da diabetes e da asma, para as quais são destinados muitos fundos de investigação. Nos Estados Unidos uma grande parte do orçamento da saúde é destinado à investigação, e isso é muito incentivador. Existe ainda o apoio de fundações como a Welcome Trust, e outras, cujo único objectivo é fazer investigação científica tendo em vista o combate das doenças que afectam seres humanos.
CL – Que conclusões e quais os resultados que chegaram até agora?
G.A. – Há alguns medicamentos desenvolvidos a partir da genética que já estão a ser testados. Porém, nos Estados Unidos, o processo de produção de um medicamento, desde que é inventado até chegar às prateleiras das farmácias, demora um mínimo de dez anos. Há que fazer uma série de testes, para saber se é seguro e eficaz. Há que compará-lo com medicamentos anteriores. Enfim, há que efectuar uma série de estudos por etapas. Julgo que teremos boas ideias de como é que se podem tratar e melhorar algumas dessas doenças, nos próximos cinco a dez anos. Se tal acontecer, só poderemos mudar a estratégia do tratamento nos próximos quinze ou vinte anos. É sempre um trabalho a longo prazo. A nossa equipa é a primeira do género a examinar cerca de dois milhões de variantes genéticas por indivíduo. Esperamos ter pronto um mapa que ajude os investigadores a identificar os genes de doenças complexas, e a melhor entenderem a relação existente entre a variação genética e a doença. Talvez isso nos consiga levar a uma futura medicina personalizada. Seria o ideal.
CL – Como a vossa, há outras equipas a estudar outras doenças…
G.A. – Sim. Para qualquer doença que se possa imaginar há estudos genéticos em marcha. E até mesmo no que se refere a doenças que se pensa serem menos genéticas, caso do cancro do pulmão. Só se desenvolve o cancro de pulmão se se fumar, no entanto há muita gente que fuma e não fica doente.
CL – Questões de clonagem e de ética…
G.A. – O que eu faço nada tem a ver com isso. A clonagem a nível de laboratório, recorrendo a animais, tem imensos usos práticos. Mas acho que eticamente não faz muito sentido clonar uma pessoa, pois somos todos independentes uns dos outros.
CL – Falamos em termos de substituição de órgãos, para que uma pessoa tenha sempre um órgão específico substituto a que possa recorrer em caso de necessidade…
G.A. – Isso não faz sentido, pois a vida do clone deve, ela mesmo, ter significado, e não ser o clone um simples depósito de peças sobresselentes. Em princípio é possível chegarmos a uma altura em que possamos dizer: este indivíduo precisa de um pâncreas novo!, e em vez de fazer o que se faz agora na clonagem, e que é ir ao óvulo e mudar o DNA para que seja substituído por outro, pode ser que se saiba que tipo de células é que vão dar um pâncreas ou um fígado ou outro órgão qualquer, e modificar essas células específicas para que seja criado um só órgão.
CL – E como é que se cria esse órgão, assim, de forma independente?
G.A. – Para criar um órgão completo é complicado. Creio que ninguém faz ideia. Mas para uma coisa mais simples, como fazer sangue, acho que é possível.
CL – Pode-se fazer sangue, é?
G.A. – Não se pode ainda, mas para lá se caminha.
CL – E como é que se processaria esse fabrico?
G.A. – Retirando células de uma determinada pessoa e fazendo o sangue com base nessas células. Estas coisas acontecem sempre um pouco mais rápido do que se espera.
CL – Ou se calhar já se sabe mais do que se julga saber, já existe mais para além do domínio público, como acontece no mundo informático…
G.A. – Acho que agora as descobertas que se fazem saem para fora muito rapidamente. Os fundos de investigação são muito competitivos. E só se conseguem esses fundos publicando os resultados de investigações prévias ou preliminares. E para isso há revistas científicas como a Nature ou a Science, onde toda a gente gosta de publicar. E o importante é ser o primeiro a publicar. Para além disso, todos os jornais de grande circulação têm editores para a área da ciência, cuja função é a divulgação desta matéria junto do grande público. Seja como for, o espaço temporal que decorre entre determinada descoberta científica e a sua divulgação nos jornais é sempre de meses.
CL – Seria possível encontrar, através destes processos, a cura para todas as doenças?
G.A. – Não sei se é possível. Podemos vencer as doenças, mas a velhice estará sempre lá.
CL – E é possível curar a velhice?
G.A. – Há quem esteja a tentar…
CL – E a imortalidade, podemos aspirar a ela?
G.A. – Acho que não.
Joaquim Magalhães de Castro