«O papel assistencial dos padres a bordo dos navios era muito importante».
Para melhor entender como eram as viagens transoceânicas de antanho que deram origem a realidades como Goa e Macau, O CLARIM foi até à Faculdade de Letras de Lisboa conversar com quem sabe. Neste caso, o professor Francisco Contente Domingues, talvez o maior especialista na nossa história náutica.
O CLARIM – Como eram as viagens no tempo das Descobertas?
F.C.D. – Hoje, viajar é uma coisa relativamente normal, algo próximo da nossa vivência quotidiana. A das pessoas do século XVI era muito diferente e as condições também. Havia um corte radical com o dia à dia, mais visível quanto maior fosse a extensão da viagem. Ir para a Guiné, Cabo Verde ou até Brasil podia ser complicado, mas ir para o Oriente era já tarefa ciclópica. É difícil perceber como é que as pessoas aguentavam condições de vida tão sub-humanas.
CL – Quais eram elas?
F.C.D. – Isto deve-se fundamentalmente a uma coisa: os navios têm muito pouco espaço disponível. As contas são difíceis de fazer, mas se lhe disser que uma pessoa conta em média com quatro ou cinco metros quadrados de área disponível para toda a viagem, incluindo o espaço ocupado com aquilo com que se alimenta, é fácil de perceber que os navios são cascas de nozes, literalmente falando. Estamos a falar de embarcações com trinta a quarenta metros de comprimento, que podem levar quatrocentas a seiscentas pessoas apinhadas e em condições de vida horríveis para os actuais padrões. Imagine viajar assim durante seis meses, em condições de higiene péssimas, sem entretenimento quotidiano…
CL – E quem eram esses viajantes?
F.C.D. – Dentro dos navios iam dois tipos de pessoas. Iam os tripulantes, os quadros do império – soldados e oficiais – e iam os passageiros, ou seja, aqueles que simplesmente eram transportados. E esses, literalmente, não tinham nada para fazer. Digamos que aos primeiros faltava-lhes o tempo para tudo; aos segundos sobrava-lhes o tempo para tudo. Há uma situação de tensão e conflitualidade latente, quando olhamos para um navio que tem, por exemplo, quinhentas pessoas a bordo, das quais 120, 150, 180 estão ocupadas na manobra do próprio navio e com a condição da navegação, e todos os outros são pessoas que vão ser transportadas em circunstâncias extremamente difíceis, o que só por isso já é motivo para haver problemas, seja a nível da disciplina ou da ocupação dos quotidianos. Imagine-se praticamente imobilizado durante seis meses sem ter nada para fazer apenas à espera de chegar ao seu destino. Ou seja, pegamos na agora corriqueira viagem de avião de doze horas, e multiplicamo-la dezenas e dezenas de vezes. É claro que havia ainda muitos outros problemas a enfrentar. O enjoo, por exemplo. Seja considerado doença ou condição normal, o certo é que o enjoo afecta muitas pessoas, sobretudo no princípio da viagem. E esta, quando se faz para o Oriente, começa logo a apanhar mau mar umas semanas após o embarque.
CL – Mas não havia grande uniformidade nessas deslocações…
F.C.D. – Sim, as viagens eram muito variadas, porque há zonas em que se apanha muito calor, para o qual as pessoas não estão preparadas, como é o caso do equador; e onde se apanha muito frio, para o qual também não estão preparadas, por exemplo, quando passam o Cabo da Boa Esperança; e depois quando os navios entram no Índico e são confrontados com as zonas de calores tórridos.
CL – E essas pessoas estão onde?
F.C.D. – Essas pessoas estão no convés e nas cobertas, a parte inferior do navio. Normalmente as pessoas tendem a dormir ao ar livre, porque, como também é fácil de perceber. Há muitas coisas que mudam no tempo histórico, e uma das coisas que mudou, por exemplo, foi a adaptação ao cheiro. Não é difícil perceber o que se pode passar nas cobertas em baixo onde estão os doentes, onde praticamente não há circulação de ar, e aquele que há é fétido.
CL – E as necessidades básicas, como eram feitas?
F.C.D. – De uma forma muito prática. Normalmente utilizavam meias pipas, ou seja, barris pequenos cortados ao meio. Os dejectos eram obviamente atirados ao mar. Mas repare, se há doentes em estado complicado, que não se podem mexer – a disenteria, por exemplo, é algo que afecta muito o viajante – as necessidades são feitas nas cobertas inferiores sem as possibilidades mínimas de garantir alguma salubridade, garantir cheiros e tudo mais. Portanto, é extremamente complicado viver naquele meio.
CL – Estamos muito longe da viagem romântica num barco à vela…
F.C.D. – Estamos nos antípodas. Aquilo era, de facto, um pesadelo. Estamos a falar de navios que têm duas cobertas, dois pavimentos cobertos, de cima a baixo, talvez com uma altura de dois metros, dois metros e meio, espaços relativamente pequenos, e onde até se chegava a cozinhar nas cobertas debaixo. Como é fácil de calcular, acender fogo num navio à vela é um perigo. Aliás, se o fogo pega num navio ele desaparece e não deixa rasto. E de certeza absoluta muitas foram as naus que se perderam em circunstâncias dessas. Sim, no alto mar o navio não deixa rasto.
CL – Será que havia alguma forma de se precaverem de semelhantes situações de perigo?
F.C.D. – Para precaver esse tipo de situações e controlar um pouco a possibilidade de haver acidentes do género, e para evitar o contacto com o ar, por motivos óbvios, os fogões consistiam, no fundo, de um espaço circunscrito onde se acendia o lume, mas isso era na coberta de baixo, ou seja, numa coberta tapada, o que quer dizer que o fumo invadia tudo. Claro que só se fazia fogo em condição de mar calmo. Se o mar está agitado não há fogo. Mas imaginemos o que é um espaço com trinta metros de comprimento e uns dez a doze metros de largura e dois metros de meia de altura e onde estariam até duzentas pessoas a tentar pôr ao lume um pedaço de carne que têm na mão… Isto gera situações tremendas, inclusivamente de violência física. Chega ao fogão quem tem mais força que os outros.
CL – E como é suposto as pessoas cozinharem a sua própria alimentação, significa que se estiverem doentes não têm sequer quem lhes cozinhe. É isso?
F.C.D. – Há situações concretas que se reportam, nomeadamente uma carta de um padre jesuíta que nos diz que ele e os seus irmãos estavam todos doentes com disenteria, e não morreram à fome porque houve um fidalgo que lhe mandou um escravo preparar-lhes a comida. Porque senão ninguém tomava conta deles. Sendo assim, nada teriam para comer a não ser a água e algum biscoito, pão muito duro recozido para durar mais tempo e não haver bicharada a entrar. Mas isso não era alimentação para todos os dias. Também nesse aspecto o papel assistencial dos padres que vão a bordo é extremamente importante, e em todos os aspectos. Para pacificar porque são um elemento de relativo controlo num descontrolo relativamente fácil.
CL – Os padres tinham um local privilegiado?
F.C.D. – Não, viajavam como outro qualquer. A distribuição dos espaços a bordo é muito simples. O espaço a bordo não é fixo. Dentro dos navios não há espaço fixo. Neste sentido, a separação dos espaços são no fundo as pequeníssimas cabinas do capitão, do piloto, do mestre e de algum passageiro mais importante, que seriam os privilegiados. E isso é feito com tabiques. Um carpinteiro constrói um tabique, separando um pequeno espaço no centro do navio que depois é desfeito. É claro que nós percebemos que se vai um vice-rei a bordo, com a família, os seus escravos, e que pode levar consigo uma considerável quantidade de bens pessoais. Há um caso de um bispo que vai para o Oriente, em 1777, que comia na baixela de prata que tinha levado. Tinha obviamente um grande espaço a bordo, tinha a sua mesa, e os escravos serviam-lhe a comida da sua baixela. Este tipo de passageiro vai num determinado espaço que, aquando uma outra viagem do navio, sem que haja ninguém de similar importância a bordo, pode ser desfeito e recriado ou dividido em dois espaços mais pequenos. O comum das pessoas vive sem espaços reservados. Missionários, marinheiros, viajantes, soldados. Dormem todos no chão, nos pavimentos de cima, tentando fugir ao ar fétido das cobertas. Mas não sabemos muitas coisas em relação a isto pois só começamos a ter informações mais apuradas a partir do século XVIII, através de relatos e relatórios. Por exemplo, há um relatório do século XVI que nos fala da necessidade de substituir colchões. Ou seja, a partir daí ficamos a saber que os viajantes dessa época já costumavam dormir em colchões.
CL – O navio era um transportador de doenças por excelência…
F.C.D. – Sim. O navio leva tudo. Leva homens, leva mercadorias, ideias, doenças, bactérias, transporta tudo lá dentro e recebe também. É evidente que as viagens sob esse ponto de vista são também muito interessantes, porque da mesma forma que os navios levam e trazem plantas e mercadorias, também disseminam agentes patológicos que são levados para fora da Europa e trazidos de fora para dentro da Europa, mas isso tem a ver, no fundo, com a falta de capacidade das sociedades da época se precaverem contra a ausência de higiene.
Joaquim Magalhães de Castro