Pombal e aquele Verão de 1759
Férias! Rolo pela estrada a caminho de uma actividade com estudantes universitários. Que gosto, encontrar aquela juventude entusiástica! Sonho também com algumas excursões através do campo, atravessando rios e montes. A tabuleta da estrada que anuncia “Pombal” distrai-me. Evoco mentalmente aquele homem estranho, diferente de tudo o que alguma vez tivemos em Portugal. Como foi possível?
Começou como um fidalgo sem ocupação, até saltar para a embaixada de Londres aos quarenta anos, ser chamado para Secretário de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros aos 51 e começar, pouco depois, um mandato ininterrupto de Primeiro-Ministro, que durou 27 anos. Ao fim de nove anos, recebeu o título de Conde de Oeiras e terminou as funções senhor de uma imensa fortuna e com o título de Marquês de Pombal.
D. José, o Rei que o chamou para o Governo, sofria desequilíbrios que o afundavam em vícios e destemperos, ao mesmo tempo que alimentava loucuras de dominador absoluto. A história dos reis portugueses e da sua corte tem a marca dos cruzamentos endogâmicos, que produz feições disformes e personalidades imaturas, como aconteceu com este Rei. A frieza de Pombal ajustava-se perfeitamente aos seus planos, porque qualquer pretexto lhe servia para matar pessoas; às vezes, uma centena em cada leva; em muitos casos, por razões fúteis; tantas vezes, sem razão nenhuma, nem julgamento, apenas para manter o terror. Nunca existiu em Portugal tanta violência, nem tão sistemática, como instrumento de poder.
O absolutismo de D. José e do seu Primeiro-Ministro apontava para o modelo de Inglaterra, em que o monarca era simultaneamente a autoridade religiosa, talvez com as variantes que o fenómeno tinha com Luís XIV, ou com o Josefismo na Áustria. Proibiam-se documentos pontifícios, nomeavam-se bispos à revelia do Papa, expulsava-se o núncio, metiam-se na prisão, com maus tratos, os bispos fiéis a Roma e tudo isso culminou em 1759 com a abolição quase completa do sistema educativo português e a expulsão dos jesuítas. Na altura, havia 861 jesuítas em Portugal, que dirigiam a Universidade de Évora, tinham uma presença importante na Universidade de Coimbra, mantinham vinte colégios gratuitos, com milhares de alunos, e mais de vinte outras instituições de formação.
Pombal tinha apenas uns rudimentos de instrução formal, o que se notava nos decretos em que punha um empenho mais pessoal. Neste caso, as deficiências da redacção contrastam com o arrojo do propósito. Exercendo violência contra os professores e deixando dezenas de milhares de alunos sem aulas, Pombal anunciava, a um país libertado, o triunfo da cultura e da ciência.
Parte da estratégia consistia em substituir a instrução gratuita, aberta a todo o povo, por uma instrução reservada aos nobres. Assim, dois anos depois de fechadas as escolas dos jesuítas, cria-se o Colégio dos Nobres. Como não encontrou quem os pudesse ensinar, o colégio só começou a funcionar cinco anos depois da fundação, porque foi preciso recrutar o corpo docente e os directores em Itália, e algumas matérias ainda começaram com maior atraso. Inaugurou-se com 24 crianças fidalgas, caprichosas e habituadas a bater nos criados. Os professores italianos aguentaram pouco e o colégio fechou.
As promessas de transformar a Universidade de Coimbra num grande centro de cultura e investigação também não tiveram êxito. Destruiu-se muito do que havia e, no primeiro ano de funcionamento das novas faculdades, em Matemática matricularam-se oito estudantes, um morreu, dois desistiram e cinco acabaram o curso. No segundo ano lectivo, inscreveram-se dois alunos, dos quais um desapareceu sem ter ido às aulas. Nos terceiro, quarto e quinto anos lectivos não se matriculou ninguém. Em cinco anos de funcionamento, a Faculdade de Filosofia teve ainda menos alunos, um total de quatro.
Em 1759, Portugal expulsa os jesuítas. Em 1773, sob ameaça de cisma, o Papa Clemente XIV acedeu a suprimir a Companhia de Jesus. Em Lisboa, a vitória celebrou-se nas ruas e nos templos e as janelas enfeitaram-se com luzes, depois de o Governo ameaçar com graves penas quem não festejasse.
Graças a D. José e a Pombal, Portugal chegou ao final do século XVIII praticamente analfabeto. Com as leis de 1834, 1848 e 1851, que extinguiram as ordens religiosas e fecharam praticamente todas as escolas que restavam, o País manteve-se analfabeto até ao fim do século XIX. A República redobrou as proclamações de progresso, mas a perseguição à Igreja e as contínuas convulsões políticas não contribuíram para melhorar a situação. No Estado Novo, lentamente, demasiado lentamente, começou a recuperar-se, mas já vamos no século XXI e falta muito para alcançarmos os outros países da Europa.
Pombal, terra do profeta de um mundo novo, considerado por alguns como o modelo da democracia, ficou para trás na placa da estrada. Rezei por ele e pelo país que ele deixou, tão pobre e inculto, algumas vezes demasiado cobarde. Um país, também, de gente esplêndida, a quem devo tanto.
José Maria C.S. André
Professor no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa