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“Silêncio”, um filme que incomoda

“Silêncio” é a adaptação ao cinema do romance de Shusaku Endo com o mesmo nome. Conta a história de dois padres jesuítas portugueses que partem para o Japão à procura do padre Cristóvão Ferreira, que teria renunciado à sua fé. Baseado em factos históricos, mas centrado numa história que não representa a verdadeira história da evangelização do Japão.

Quando Francisco Xavier chegou ao Japão, em 1549, para espalhar a Boa Nova, encontrou uma realidade muito diferente daquela que é retratada no filme de Scorsese. Os senhores feudais que controlavam o Japão, chamados de dáimios, foram sensíveis às palavras dos missionários e o Catolicismo cresceu no País. Mas quando o xogunato da família Tokugawa toma conta dos destinos do País no início do séc. XVII, tudo muda. «Com o xogunato, o Japão fechou-se a qualquer influência cultural ou espiritual vinda de fora do País, na qual se incluiu o Cristianismo. Em 1639, por ordem de Xogun, os jesuítas são expulsos do País», explica-nos o padre António Júlio, historiador e sacerdote jesuíta.

A expulsão é pacífica, mas o problema foi quando os governantes japoneses se aperceberam de que muitos sacerdotes jesuítas tinham ficado no País, operando os seus trabalhos missionários na clandestinidade. Um deles era o padre Cristóvão Ferreira. «O padre Cristóvão Ferreira foi um dos que quis ficar quando os jesuítas foram expulsos. Ele foi o último provincial da região, sucedendo ao padre Sebastião Vieira. Uma das coisas importantes que o padre Ferreira fazia era a escolha de vinhos para celebrarem a Eucaristia, e não sabemos se não terá sido isso que o denunciou, porque o vinho não fazia parte da cultura gastronómica do País», conta o padre António Júlio.

Capturado pelas autoridades, o padre Ferreira foi sujeito a tortura para que renunciasse à sua fé, assim como muitos outros sacerdotes nessa altura. «É preciso compreender que o tipo de tortura foi inventado especificamente para obrigar os cristãos a renunciar a fé. Era a fossa. Eles eram presos pelos pés, abria-se um buraco na terra, a cabeça era lá enfiada e eles ficavam pendurados de cabeça para baixo. Para piorar, atavam o corpo de maneira a que o sangue não fluísse todo de imediato para a cabeça, fazendo com que o sofrimento fosse prolongado. Podiam estar três a cinco dias nisto, e perdiam completamente o juízo porque estavam sujeitos a uma pressão e dor fortíssimas». Foi neste contexto que o padre Ferreira renunciou a sua fé, mas a verdade é que foi dos poucos sacerdotes torturados que o fizeram. «É importante perceber que estamos a contar a história de um grupo de cinco ou seis sacerdotes jesuítas que, sendo torturados, abjuraram, num contexto de 205 que morreram mártires e que não abjuraram, os conhecidos mártires de Nagasáqui», reforça o padre António Júlio.

A figura do padre Cristóvão ganhou mais relevo na altura porque, sendo o provincial, a sua renúncia foi usada como propaganda pelos governantes japoneses. «As autoridades japonesas devem ter usado aquela história para tentarem mostrar a falsidade do que o Cristianismo ensinava», e por isso este caso é tão falado.

O filme aborda esta questão, sob o ponto de vista de dois jesuítas portugueses, que nunca existiram, que partem para o Japão à procura do seu mentor. «O padre Cristóvão Ferreira é real, mas os companheiros que o tentam resgatar são ficcionados, com base nas personagens que, de facto, tentaram ir resgatá-lo. Houve três tentativas para o fazerem, com sacerdotes que não são portugueses. As personagens do filme são inspiradas na figura do Marcelo Mastrilli. São embaixadas terríveis, porque eles são presos e mortos assim que chegam ao Japão. Acho muito estranho que o autor do romance tenha atribuído nomes portugueses a esses sacerdotes, mas não sei explicar porquê».

Em entrevista ao padre James Martin, um jesuíta que serviu de consultor no filme, Martin Scorsese revela que o coração da obra de Endo é «a profundidade da fé». «É a luta pela descoberta da verdadeira essência da fé», refere o realizador norte-americano, que já tinha a ideia de fazer deste romance um filme desde que tinha lido o livro em 1989, quando estava no Japão a filmar para Akira Kurosawa.

A expectativa ao redor do filme foi crescendo à medida que se iam desfazendo dúvidas e rumores. Até que, a 29 de Novembro, o filme teve uma ante-estreia para uma audiência muito particular: 400 sacerdotes jesuítas foram convidados a ver pela primeira vez o filme que fala sobre um dos momentos da história da Companhia de Jesus. O Papa Francisco também foi convidado, mas não esteve presente, tendo recebido em audiência particular Martin Scorsese depois disso.

No meio de todos os sacerdotes estava um português, o padre António Ary. «O filme é muito intenso, a história tem muita força e é difícil deixar indiferente… embora também provoque sentimentos contraditórios. Por um lado, a admiração e compaixão diante de uma experiência de fé tão radical, como a vivida pelos cristãos do Japão, durante os tempos de perseguição… Mas o centro do filme é a fé posta à prova até ao limite, o “silêncio” de Deus e a fragilidade humana na resposta», disse à Família Cristã, depois de assistir à ante-estreia.

Pensando no facto de a história se centrar numa personagem que renunciou à sua fé, poder-se-ia pensar que seria um filme de crítica, mas tal não sucede, segundo o padre António Ary. «Não diria crítica… sim, um “outro lado”, menos ou nada “glorioso”, mas por isso também menos conhecido. Não se escrevem livros, não se celebram missas, não se recordam nomes de quem diante da perseguição e da tortura não encontrou a força para permanecer firme… mas qual é o cristão que pode dizer que “aguentaria”?», questiona.

O padre António Júlio dá uma achega histórica para enfatizar esta mesma questão. «Estes pedidos para serem soltos, em troca da apostasia, não dizem muito de uma perda de fé, diz é que as pessoas sujeitas a uma tortura tão forte e dolorosa perdem o discernimento», acredita, referindo que a própria vida do padre Cristóvão depois disso é reveladora de um sentimento de arrependimento pelo gesto. Não há muitos registos, mas há alguns mitos. «Sobre ele há muitos testemunhos posteriores que são contraditórios, sobretudo de mercadores. Esteve muitos anos em Nagasáqui, e para o obrigarem a fazer uma vida japonesa arranjaram-lhe uma mulher. Mas tudo é duvidoso, porque os mercadores que se encontravam com ele diziam que lhe tinha sido imposta aquela mulher, uma viúva de um condenado chinês, e muitos diziam que ele não fazia vida conjugal, era uma espécie de serva. Mesmo o facto de se dizer que houve um filho, que seria filho da relação anterior dessa mulher, não é claro», afirma.

É-lhe atribuída uma obra em que contradizia os dogmas da Igreja, mas o padre Hubert Cieslik, um autor que tem uma biografia extensa sobre o sacerdote, tem muitas dúvidas. «As autoridades japonesas do tempo tiveram todo o interesse em explorar esta declaração do padre Ferreira, porque ele era o provincial na altura, pelo que muito é duvidoso. Outras coisas sabemos, de ele participar como intérprete nas sessões em que outros renunciavam à sua fé ou de que, segundo os mercadores, nunca teria denunciado nenhum colega sacerdote. Ele usava um nome japonês, Sawano Chuan, mas a sua assinatura aparece nesses documentos», conta.

Sobre o final da sua vida há ainda mais dúvidas. «O fim do padre Ferreira tem várias narrativas e acho que nunca se saberá qual a verdadeira. Temos testemunhos em segunda mão dos holandeses que dizem que ele se manteve assim até ao final da vida, e há os testemunhos dos mercadores espanhóis e portugueses, que continuaram a ter contacto com ele e que dizem que, no final, ele se arrependeu dessa declaração de apostasia e que as autoridades japonesas, sabedoras disso, o vieram buscar e acabou por morrer da mesma forma, na fossa», diz o historiador jesuíta.

O padre António Ary recomenda vivamente que o filme seja visto «É muito claramente um filme sobre a fé… não só aquela de quem viveu no séc. XVII, mas para os cristãos de hoje… Não tenho dificuldades em recomendar o filme […], mas também não direi a ninguém que é um filme reconfortante: é um filme que incomoda, que põe em questão, que nos quer pôr em contacto com a nossa fragilidade enquanto pessoas de fé…», conclui.

RICARDO PERNA

Família Cristã

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