A nova desordem mundial
O equilíbrio de forças mundial está em reconfiguração. Com os Estados Unidos constrangidos pela ameaça norte-coreana e pela impreparação do seu Presidente, abriu-se espaço para outros protagonistas reforçarem a sua autonomia e lançarem estratégias mais ambiciosas. O tempo é de oportunidades para os ousados – mas também de riscos acrescidos para o Mundo.
Viver num mundo bipolar, ou mesmo unipolar, tem as suas vantagens. A clareza é uma delas.
Durante cerca de 60 anos, as regras do jogo foram simples: primeiro, até 1991, mandavam os Estados Unidos e a União Soviética; depois, só os Estados Unidos. Foi nessa altura que George Bush (pai) decretou a emergência de uma Nova Ordem Mundial e o cientista político Francis Fukuyama escreveu um livro intitulado “O Fim da História”.
Durante alguns anos – poucos, como se veio a comprovar – parecia que o triunfo norte-americano na Guerra Fria tinha trazido uma nova era de paz, democracia, estabilidade e liberalismo económico. A História tinha mesmo terminado, porque o triunfo dos valores ocidentais era total e não se vislumbrava qualquer outro sistema político que lhe pudesse fazer frente.
Esse interlúdio durou pouco mais de uma década. Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 estilhaçaram a confiança dos Estados Unidos na infalibilidade dos seus próprios desígnios e empurraram-nos para uma intervenção desastrosa no Médio Oriente, cujos efeitos totais ainda não estão completamente desvendados.
Noutra frente, a autoconfiança triunfante dos apóstolos do liberalismo comercial levou à integração da China na Organização Mundial de Comércio e à consequente abertura dos mercados ocidentais aos seus produtos. Isso permitiu-lhe, em poucos anos, assumir-se como a segunda maior potência económica mundial e como uma potência militar de primeira grandeza, capaz de rivalizar com os Estados Unidos naquele que era, até há muito pouco tempo, um “mar americano” – o Oceano Pacífico.
Essa abertura dos mercados causou enormes problemas económicos nas sociedades mais desenvolvidas, e com eles vieram os populistas, com Donald Trump à cabeça. Apesar de se ter revelado repetidamente um candidato completamente impreparado para lidar com as enormes responsabilidades de liderar o país mais poderoso do mundo, a verdade é que cerca de metade dos eleitores norte-americanos preferiram acreditar na promessa de que, com ele, “a América estaria sempre em primeiro”.
Esse “primeiro” implicava, para Trump, pôr em causa todos os pilares da política externa norte-americana levantados desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a começar pelas alianças militares.
Não admira, por isso, que os parceiros europeus da NATO tivessem acolhido com choque e estupefação a vitória eleitoral de Trump, em 2016. Antes de ser eleito, o candidato republicano tinha acusado os aliados de “explorarem os Estados Unidos” e tinha dado a entender que não os protegeria em caso de agressão russa.
Apesar de exposto de forma contraproducente para os próprios interesses norte-americanos, o argumento de Trump não deixa de ser verdadeiro. A Europa gasta muito pouco com a sua própria defesa e colocou-se completamente na dependência do “guarda-chuva” norte-americano.
Essa situação deixou de se tornar sustentável porque a Rússia encetou um processo de rearmamento e recuperação da sua antiga esfera de influência, com invasões na Geórgia e na Ucrânia, e porque os Estados Unidos também já não estão em condições de poder arcar com todos os fardos em termos de segurança. As guerras no Iraque e no Afeganistão exauriram os recursos norte-americanos e as crescentes ameaças chinesa e norte-coreana obrigam a que o grosso do seu poderio militar tenha de ser dirigido para a Ásia e o Pacífico.
Esta situação cria um alinhamento nos interesses estratégicos da Rússia e da China, porque ambos os países sabem que é do seu interesse que a atenção e os recursos dos Estados Unidos estejam divididos, e divididos é o que tendem a estar.
Depois de duas décadas de redução muito acentuada da sua presença na Europa, as forças armadas norte-americanas voltam a estar em força no continente. Há milhares de soldados a participar em manobras frequentes no Leste e unidades blindadas voltam a cruzar as estradas e os campos da Europa.
Apesar de toda a retórica anti-NATO de Trump, os interesses estratégicos dos Estados Unidos impõem-se. Não só o orçamento para a presença militar norte-americana no continente sobe exponencialmente (de três mil e 400 milhões de dólares, em 2017, passa para quatro mil e 800 milhões, em 2018), como estão a ser construídas mais de uma dezena de novas bases em vários países.
Esta presença é particularmente benéfica numa altura em que a União Europeia parece cada vez mais incapaz de fazer aquilo para que foi feita – unir. A saída do Reino Unido é apenas o sintoma mais forte de um mal maior, que está agora a ser alvo de uma terapia agressiva, mas de sucesso duvidoso. A Cooperação Estruturada Permanente (PESCO) – o embrião de um exército europeu – não vai ter a adesão de todos os Estados-membros e, mais importante, não vai ter recursos para fazer algo de muito significativo. O problema de fundo é que os cidadãos europeus não estão dispostos a fazer os sacrifícios económicos e sociais necessários para que as suas forças armadas sejam capazes de os defender com eficácia.
É porque a Europa continua a ser um “tigre de papel” em termos militares e porque os Estados Unidos têm cada vez menos vontade e/ou capacidade de acorrer a todas as crises que há cada vez mais Estados a agir unilateralmente e a seguirem as suas próprias estratégias.
Veja-se o que está a acontecer com a Turquia, que faz o seu próprio jogo na Síria e instala bases militares na Somália e no Qatar; veja-se a Polónia, que se quer transformar numa potência militar europeia e numa testa de ponte contra as ambições russas na Ucrânia e mais além; veja-se a Arábia Saudita, que lança uma guerra diplomática e económica contra o Qatar e tenta empurrar Israel para uma guerra contra o Hezbollah, os aliados libaneses do Irão; veja-se finalmente a Coreia do Norte, que não hesita em colocar o mundo à beira de uma guerra nuclear para assegurar a sobrevivência do regime mais anacrónico dos nossos dias.
Tudo isto e muito mais mostra-nos que o Mundo vive agora um estado de fluxo perigoso. No final – que não se antevê – poderá surgir a tal Nova Ordem Mundial de que tanto se falou há mais de vinte anos. Para já, o que há é apenas desordem.
ROLANDO SANTOS
Família Cristã