Entre os Cossacos de Kuban – II

A cultura e o custo de vida

Continuamos, esta semana, a revisitar Staraminskaia, vila-kolkhoz, no sul da Rússia, nascida da associação de um grupo de cossacos. Passado os períodos czarista e bolchevique, a população procurava novas formas de sobrevivência. A tarefa, porém, não parecia ser nada fácil. Continuávamos a ser hóspedes do nosso amigo Vassili Parfinovic, cidadão russo de origem moldava.

Na recepção da Casa da Cultura local, o guarda olhava a TV emudecida. A sala de dança estava trancada com um cadeado, à espera do fim-de-semana. Os instrumentos da fanfarra local repousavam pousados em cima de cadeiras. Todos os Domingos, às 8 da manhã, Vassili, maleta do trombone na mão, encontrava-se ali com os amigos. Depois, num velho autocarro, dirigiam-se juntos para o mercado onde tocavam semanalmente. Duas horas de música a troco de alguns milhares de rublos. Aliás, durante todo o Verão, a música gravada povoava a noite até tarde.

«São as festas de casamento», resumia Vassili.

A irmã mais nova de Mama Galia trabalhava e vivia na central de gás, por detrás da Casa da Cultura, na companhia das caldeiras, do televisor e de um gato. Os Parfinovic aproveitavam para tomar aí a “ducha” semanal. Nas restantes ocasiões a bacia de água quente, em casa, resolvia o problema.

Ludmila, esposa de Ramiz, professora de Inglês na escola número dois, sugeriu que fossemos a uma aula para falar de Portugal com os seus alunos e assim obrigá-los a ouvir e falar em Inglês. «Nunca têm a oportunidade de praticar o que já aprenderam», dizia ela. O Inglês que se falava naquele estabelecimento de ensino era pouco mais do que básico. As fórmulas, à força de tanta repetição, saiam da boca quase sem querer. No final da nossa intervenção seguiu-se a sessão de autógrafos. Todos queriam tornar-se “pen-friends” – uma das únicas palavras que arriscavam dizer, para além dos “hellos” e “goodbyes” da praxe.

«A inscrição na universidade é proibitiva», explicava Ludmila, pensando no futuro dos pupilos. «A verdade é que um milhão e 500 mil rublos é muito dinheiro». Depois, olhando em volta com um ar desolador, acrescentara: «muitos deles vão ter de ficar pelo caminho».

A escola debatia-se também com a falta de livros. A biblioteca tinha pouca coisa em Francês, ou até mesmo em Inglês. Pormenores que, durante o regime soviético, estavam salvaguardados. «Agora, é o salve-se quem puder», atirava a desanimada docente. Mas, a curiosidade pelos livros estrangeiros ultrapassava os muros da escola. Mama Galia mostrara-nos um exemplar antigo do Daily Telegraph – que guardava religiosamente – para que o autografássemos.

Vassili comprara um saxofone em segunda mão – «um BC, feito na Alemanha» – mas não havia meio de arranjar palhetas para o poder tocar. O Morgin, um “karalevski” (cão de raça) de orelhas pontiagudas, era o seu único luxo. «Custou-me 300 dólares» – dizia – «corresponde a três meses de salário!». Com quatro meses apenas, mas já enorme, o bicho era tratado como um bebé. Tinha até honras de hóspede. Ao contrário de Kubik e Marta, cães da plebe, presos por um cadeado a uma casota de tábuas, a dormir ao relento.

Vassili apontava para o calendário com as imagens de diferentes estirpes canídeas e respectivo valor monetário. «Lux, Lux», exclamava abraçando o cão. «Foi o meu filho Serguei que o trouxe da Sibéria».

 

OBSESSÃO PELOS PREÇOS

Os preços eram uma verdadeira obsessão para quem tinha de esticar o cordão da bolsa todos os dias. «As pessoas fazem pequenos negócios para compensar os parcos salários», argumentava Tatiana Ivenko, de quarenta anos de idade e com uma filha. No mercado central vendia-se roupa, calçado, electrodomésticos, cassetes… Tudo exposto em cima dos tejadilhos dos carros. As malas dos mesmos serviam de caixote-mostruário para as batatas, os tomates e as beringelas. Os mais idosos traziam do quintal fruta, legumes ou ovos caseiros. Vendia-se ao balde e não ao quilo – particularidade do comércio improvisado na Rússia. Amontoado no interior dos camiões, o peixe seco, vindo do mar de Azov, ameaçava extravasar. Até as empregadas dos supermercados, bata branca, montavam bancas em frente ao respectivo estabelecimento. Mas era à entrada das lojas da cooperativa – mais baratas – que as filas se tornavam mais longas. «Há cinco anos nada disto seria possível» – referia Tatiana – «mas agora toda a gente pode comprar e vender livremente».

O marido era engenheiro mecânico e tinha o seu salário dependente da época do ano. «É especialista em frigoríficos», especificava. Durante o Verão fazia uma média de 100 mil rublos; no Inverno o montante descia para metade. «O que lhe vale são os meses de Julho e Agosto. Chega a fazer 200 mil por mês».

Falava-se também, mas à boca fechada, de negócios menos lícitos, e de como certas pessoas tinham começado a construir casa de um dia para o outro. Mas sobre esse assunto ninguém «ousava arriscar opiniões», como comentava Tatiana. No final da conversa, quando lhe perguntámos o nome e a idade, Tatiana acordava para a realidade. Até ali tinha estado a desabafar (e bem precisava), mas bem depressa mostrara alguma preocupação. «Falo de tudo isto, mas gosto muito da minha pátria e do meu povo. Não é justo que se fale só dos problemas», afirmava. E com inteira razão. Era a sua russofilia a manifestar-se. Porém, a realidade nua e crua saltava à vista. O salário médio de um professor mal chegava aos 200 mil rublos mensais. «Trabalho das sete da manhã às seis da tarde», dizia Ludmila. «Em casa preparo ainda as lições para o dia seguinte». A irmã – «pintora» – trabalhava no aviário local, das oito às quatro da tarde. «Ganha apenas oitenta mil rublos». Se tivermos em conta que um gelado – produto largamente apreciado e consumido pelos russos – custava 600 rublos e uma garrafa de cerveja 800 ou 900, na verdade, o salário não dava para grande coisa.

Em casa dos Parfinovic o samovar eléctrico estava sempre cheio. Pronto para o chá. Ao estilo russo: vertia-se um pouco do líquido concentrado e só depois se acrescentava a água quente.

Alojaram-nos no quarto de Misha. Na companhia de pinups, Arnold Schwarzenegger, Ladas desportivos e um enorme quadro da Última Ceia. Na parede de sala, o centro das atenções era o cartaz da católica Maria, estrela de uma telenovela mexicana que obtivera estrondoso êxito na televisão russa.

Em mais um aniversário da retirada do último contingente militar russo da Alemanha, o Canal 1 mostrara os habituais discursos das altas patentes e os artistas vieram prestar homenagem ao Exército Vermelho. Era como se nada tivesse mudado na Rússia. Os grupos folclóricos e os cantores de charme estavam a cumprir o seu papel e Mama Galia, Vassili e Giena, emocionados pelas árias que conheciam de cor, cantaram com eles. Foi o pretexto para abrir mais uma garrafa de vodka. Como se fosse preciso um pretexto… Em qualquer lar russo há sempre um Rossya à mesa. Ou ao alcance da mão. Pois Dubrovski, o mui afamado vodka, que se deve beber bem gelado, é para bolsas mais requintadas.

Nativos das estepes da Ucrânia e do sul da Rússia e constituídos por camponeses fugitivos que escapavam ao controlo dos senhores da guerra, os cossacos foram-se estabelecendo mais tarde nas regiões do interior da Rússia asiática. Famosa era a sua coragem, bravura, força e capacidade militar (especialmente na cavalaria), o que lhe permitiria constituírem-se como unidade militar de elite. Actualmente, na Rússia moderna, os cossacos são vistos quer como um grupo étnico, quer como uma parte das forças armadas da Rússia, tendo sido contabilizados para cima de 150 mil cossacos, enquanto que o grupo étnico é constituído por vários milhões de descendentes dos guerreiros cossacos.

A palavra cossaco deriva de um termo social utilizado na língua turca, qazaq, que significa “aventureiro” ou “homem livre”. Este termo foi pela primeira vez referido numa crónica rutena datada de 1395.

Joaquim Magalhães de Castro

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