Entre os Cossacos de Kuban – I

Resquícios das antigas kolkhozes

Staraminskaia, vila-kolkhoz no sul da Rússia, nasceu da associação de um grupo de cossacos. Após a passagem de czaristas e bolcheviques, a população procurara uma nova identidade. Tarefa que não se vislumbrou nada fácil.

A qualquer hora da noite o automóvel particular podia servir de táxi. Sobretudo quando se o utilizava para compensar os magros 100 dólares mensais de salário médio. E falamos de uma das zonas mais prósperas da Rússia, a estepe de Kuban – pátria dos aguerridos cossacos – que se estende a sul de Rostov-sobre-o-Don.

Vassili Parfinovic, de regresso de uma viagem à Moldávia, seu país natal, arrastou-nos para a aventura. Quase sem o querermos, vimo-nos sentados no banco de trás de um Samara, a servir de táxi, rumo a casa desse professor de música que se exprimia tanto por gestos como por palavras. Vício latino que lhe ficou no sangue, apesar de ter deixado os Cárpatos, adolescente ainda.

Minutos depois, tínhamos uma mesa posta à nossa frente, com fatias de brinza – «frommagio de cabra», explicava Vassili – pão negro, tomates e pepinos avinagrados. «Esta reserva foi guardada para hóspedes especiais», dizia, enquanto limpava o pó à garrafa de moscatel que trouxera consigo. Mas antes, e para brindar, o vodka era bebida que se impunha. Depois do gole da praxe, nada melhor do que uma dentada no tomate avinagrado para cortar o sabor do álcool. Giena, o filho mais velho, trouxera o banian – acordeão russo – e o sintetizador Yamaha. E foi assim, ao som de Bésame Mucho e L’éte Indien de Joe Dassin que nos estreámos em Staraminskaia, kolkhoz a trinta quilómetros de Ejesk, porto piscatório do mar de Azov.

 

KOLKHOZ DOS COSSACOS

Fruto da união de antigos servos e rebeldes sem abrigo vindos da Rússia, Polónia e da Lituânia, no século XVI, os cossacos organizaram-se em comunidades agrícolas e estabeleceram-se a sul do rio Deniepre, na bacia do Don, montanhas do Cáucaso a oeste do Cazaquistão. No Don, constituíram-se como exército e elegeram chefes locais – os ataman. O Governo czarista, com o objectivo de os manter sob controlo, ofereceu-lhes autonomia em troca de ajuda militar. Mas isso não lhes acalmou a rebeldia. Antes pelo contrário. Foram eles os responsáveis pelas revoltas de camponeses ocorridas nos séculos XVII e XVIII. Durante o reinado de Catarina, a Grande, a autonomia cossaque seria finalmente anulada. Após a revolução de Outubro, os reputados guerreiros estiveram particularmente activos. Das três ofensivas de russos brancos contra os bolcheviques, em 1919, a mais efectiva teve origem aqui, nas estepes de Kuban.

Staraminskaia está rodeada por pomares, hortas e plantações de trigo-sarraceno. Mais distantes, nas estepes, foram implantadas cooperativas agrícolas que passaram já das mãos do Estado para associações ou entidades privadas. No entanto, guardavam ainda os nomes revolucionários. A povoação assistia a um surto de construção civil sem precedentes. Casa nova era, por agora, e naquela ambiente rural, o maior símbolo de prosperidade. Respeitavam-se, contudo, os padrões tradicionais de construção. Os motivos decorativos desenhados em volta das janelas mantinham-se, apesar de a madeira ter sido substituída pelo tijolo. Mais barato. O modelo de casa de um piso só, permanecia também. Assim como as cercas de ripas que circundavam os quintais plantados com fruteiras e ramadas. E as tradicionais chaminés, beirais, portões e cataventos em zinco ornamentado ressurgiram com novo fôlego.

Anatoli, pai de Tânia, mulher de Giena, era o artesão mais conotado das redondezas. Suspensórios sobre o tronco nu, chapéu de feltro na cabeça, ele trabalhava o zinco na sua garagem. «Há anos que não havia uma vaga de calor como esta», dizia ele, enxugando o suor que lhe escorria pelo rosto.

A estepe é propensa a exageros climatéricos. De Inverno as temperaturas chegam a aproximar-se dos cinquenta graus negativos. No Verão o ar pesa. Mas esse ano batera todos os recordes. «Há três meses que não chove», queixava-se Vassili, enquanto apanhava batatas e abóboras aproveitando o fresco da manhã. No dia seguinte chegava a notícia de que a cólera se tinha alastrado a Krasnodar, centro administrativo de Kuban. Estávamos em pleno Verão. Sim, cólera, por lá doenças dessas tinham regressado em força. «Foram os alunos do Cáucaso que a transmitiram aos estudantes russos, quando regressaram de férias», afirmava em tom alarmista Ramiz, amigo da família, um dos muitos tártaros que habitam a região.

Outrora, fora o clima de guerra civil, durante anos vivido nas repúblicas autónomas do Cáucaso, que originara focos de cólera que se tinham mantido localizados nas áreas de conflito. Mas dessa vez a origem era desconhecida e saíra fora do controlo.

 

PESCA, TÉNIS E DISCOTECA

«Giena trabalha demais», queixava-se a esposa, Tânia. «Sai de casa ao nascer-do-sol e só volta à noite». Mas os resultados desse sacrifício são visíveis. Tinham a sala-de-estar mobilada com sofás caros, um televisor Sony e jogos de vídeo para entreter os dois filhos, Yuri e Natasha; três e oito anos, respectivamente. Giena era empreiteiro. Chegava a fazer mil dólares «nos meses de mais trabalho». Uma soma astronómica, se tivermos em conta que um salário de 200 dólares mensais era considerado «muito bom». Giena pensava já em trocar o sidecar por um Lada. O Volga estava ainda longe da sua bolsa: dezassete milhões de rublos. «É um carro de luxo», dizia, «o preferido dos dirigentes do partido». Por enquanto, a fiel Jawa checoslovaca cumpria o seu papel. Servia também de companhia nas longas sessões de pesca, uma das actividades preferidas das gentes de Staraminskaia. Era frequente encontrar famílias inteiras, de cana na mão, nas margens dos vários braços da ria que faz ligação com o Azov. Giena chegava a passar aí noites a fio. Aparecia depois, de manhã, canas de pesca enfiadas no sidecar, a arrastar pelo estradão. Tânia já se especializara até na preparação do peixe. Cada dia confeccionava um prato diferente. Mas é cru que os cossacos o preferem. Depois de seco – num estendal, como a roupa – «acompanhado com cerveja fresca», como dizia Giena. «O que sabe a presunto é o melhor».

No sítio onde costuma pescar funcionava ainda, em sistema cooperativo, uma central eléctrica. «A primeira de Staraminskaia», informava Vassili. No interior os empregados comem lascas de peixe regadas com vodka – o petisco dos pobres. Vodka é a bebida todo-terreno. Mas havia quem não se contentasse e preferisse beber o fatal Spirit: 90 por cento de álcool!

«Champanska só aos Domingos e nas festas», dizia Serguei, amigo de Misha, o filho mais novo de Vassili. “Champanska” é o termo russo para designar champanhe.

Serguei, trinta e três anos, era de Mormonsk, no norte da Sibéria. Estava em casa dos Parfinovic há uns meses. À procura de emprego. Misha vivia agora com os seus, em Mormonsk. Tivera mais sorte, pois encontrara trabalho como lenhador.

Serguei jogava regularmente ténis com os amigos. Num terreno circular delimitado por uma rede, junto ao estádio da cidade. Aos fins-de-semana o recinto servia de discoteca ao ar livre. Os graffitis e os murais pintados em pranchas de madeira presas à vedação eram a decoração apropriada. «Cerveja? Gelados?», a pergunta era constante. Serguei e os colegas querem que os amigos estrangeiros se sintam em casa.

«Gostam de rock russo?», perguntava Andrei, com o gravador na mão. O som dos Bravo, banda de São Petersburgo, servia de fundo à partida de ténis. Andrei estava desempregado e vivia sozinho com a mãe. «É o melhor amigo de Misha», afirmava Vassili. O jovem, de vinte e um anos, vivia num bloco de prédios de cinco andares, semi-degradados, construídos junto à Casa da Cultura, no ponto mais alto da povoação. «Nem sabe a pena que sinto em não ter casa própria como toda a gente», queixava-se Tatiana Ivenko, funcionária dos correios e vizinha de Andrei. «Vim viver para cá tarde demais», dizia Andrei também. «São as casas que nos deixaram Estaline e Khrushchev», ironizava Vassili.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *