Portugal no coração
Como olham os novos emigrantes para Portugal? Do país que os acolheu, como lêem o lugar que os viu nascer? Há quem diga que falar de emigração dentro da União Europeia é um conceito que talvez tenha caído em desuso. Hoje, todos são cidadãos que circulam num espaço aberto, sem fronteiras. Mas há muros construídos por saudades que não são derrubados noutras latitudes. Ai este fado…
Ninguém sai donde tem Paz – ouve-se na música de Pedro Abrunhosa com Camané em “Para os Braços da Minha Mãe”. A paz não é ausência de guerra. E paz laboral era o que Vítor Rosa, de 44 anos, não sentia. Funcionário público, ficou desempregado em 2008. Depois foi acumulando trabalhos precários, como professor do Ensino Secundário e bolseiro investigador. Cansado de tanta incerteza, decidiu há três anos abalar para um destino muito procurado há umas décadas por tantos portugueses. Não foi fácil. O que ali comia era graças à solidariedade. Diz-se que o que não mata, engorda. Vítor apenas engordou em sonhos. Hoje é educador numa associação – France Terre d’Asile – e professor de Português em várias escolas de línguas. À data desta entrevista, estava para breve outro desafio: assumir a coordenação da Santa Casa da Misericórdia de Paris.
Vítor surge a descer as escadas da sua primeira casa em Paris no videoclip “Para os Braços da Minha Mãe”, mas tem subido alguns degraus do sucesso na Cidade Luz. Foi ali que começaram a entrar alguns raios de esperança na vida deste docente. Mas a mulher e os filhos ficaram em Portugal.
Pergunto-lhe como olha hoje para o país que deixou. «É um país como outro qualquer. Mas este é particular, pois encontra-se à beira-mar plantado». A ironia é entremeada com outra resposta: «Eu diria que estamos sempre em crise, desde os Descobrimentos. Aliás, foram os cofres vazios que nos levaram à Expansão Marítima. Os dirigentes políticos não se cansam de dizer que somos o bom aluno da Europa. Mas não passamos disso. Não temos uma classe política capaz. O que prevalece é o favoritismo e os políticos de carreira, sem experiência, é que nos conduzem ao estado em que estamos: falidos».
Vítor tem contacto com muitos outros portugueses por ser voluntário na Santa Casa. Numa posição privilegiada para observar muitos compatriotas que residem em Paris, tem-se apercebido de que há muitos que estão integrados na sociedade francesa, em funções de relevo, mas também há os que estão a passar sérias dificuldades : «Para esses, o sentimento é o de que os Governos, de direita ou de esquerda, os abandonaram». É por esta e por outras que gosta tanto de citar Guerra Junqueiro: «Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta».
Por detrás das palavras críticas, quer regressar a Portugal. Costuma gracejar dizendo «morto ou vivo». Porém, para voltar precisaria de «um trabalho condigno» com a sua formação e habilitações, «mais ou menos bem remunerado». Neste discurso está ainda intercalada a palavra saudade: «Saudades da minha linda região do Alentejo, da família, do clima, da comida». Regressa de dois em dois meses a Portugal. Não passa o ano inteiro a sonhar com Agosto, como as gerações mais antigas de emigrantes, mas anseia pelo Verão português: «Agosto tem outro sabor». Carrega no peito a saudade, mas diz sentir «sobretudo o sentimento e valores de Solidariedade, Fraternidade e Igualdade. Acredito num mundo melhor. Utópico? Sim, gosto de o ser!»
«Neste momento não me parece possível regressar» – Mariana Biela, 33 anos, é uma mulher pragmática. As circunstâncias levaram-na para a Polónia há oito anos. Ela e o marido – que é polaco – concluíram que o projecto de vida que tinham em comum não cabia dentro de Portugal. Seria mais fácil constituírem família em Varsóvia. Entretanto já nasceram dois filhos. Mariana é tradutora e trabalha a partir de casa. Acompanha os seus rebentos mais de perto e com uma qualidade de vida que não teria por cá. «Neste momento não me parece possível regressar. Acho difícil termos o nível de vida que temos actualmente na Polónia vivendo em Portugal. O custo de vida aí é mais elevado do que cá, os colégios são mais caros, os médicos também… Para voltar teríamos de arranjar aí trabalho com uma remuneração que fizesse face às despesas básicas…»
Observa a realidade que se vive em Portugal, e não esconde o seu espanto: «Em geral, o estado do País parece-me pior do que quando daí saí. Notei muitas consequências da crise. Por um lado, as pessoas que vivem com bastantes dificuldades, mas, por outro, também me apercebo de que há muita gente a viver muitíssimo bem – o que me surpreende muito, tendo em conta a situação do País».
Mariana está bem integrada em Varsóvia e a maioria dos amigos são polacos. Dos portugueses que lá residem, diz que «a tendência geral é quererem ficar, por sentirem que em Portugal não há oportunidades». Para matar as saudades, a tradutora fala frequentemente ao telefone com a família e alguns amigos. Trocam e-mails, mensagens e enviam fotos uns aos outros para se manterem actualizados sobre o que se vai passando entre Portugal e Polónia. O pior é «não acompanhar de perto o desenvolvimento dos sobrinhos pequenos, de não participar nas festas de aniversário». Sente falta do calor afectivo da família alargada. E do calor português. «Os Invernos são difíceis aqui, apesar de já estar habituada. Faz-me falta mais Sol, mais bom tempo».
No Verão, a Mariana vem passar «uma estada prolongada» a Portugal para que os seus filhos «reforcem os laços com a família, se embeberem na língua e na cultura, e absorverem todos os benefícios das férias na praia». Volvidos alguns anos, os sentimentos destes jovens portugueses que vivem fora do País tornam-se ambíguos: «As saudades são grandes, sonhamos voltar a casa… Mas, quando nos estabelecemos num local e passamos aí vários anos, construímos uma nova vida, novas raízes. Criamos amizades novas, hábitos novos… As crianças também têm os seus amigos. O nosso dia-a-dia é aqui. Claro que gostamos de ir a Portugal e passar férias, mas se agora nos mudássemos para lá, iríamos sentir muitas saudades dos amigos e da vida de cá».
«A partir de certa altura», acrescenta, «quando a pessoa está bem integrada na sociedade do local onde vive cria-se um sentimento contraditório. Sonhamos com o regresso, porque o coração nos chama a tal, mas a vida confortável que temos dá-nos pouca vontade de sair. Penso que isto piora quando há filhos, porque a mudança de país também tem impacto neles. Eles perdem os amigos e são colocados num novo meio onde acabarão sempre por ser considerados estrangeiros, por virem de um país diferente».
«É um país bom para se passar férias» – Nuno Pinto, 37 anos, foi para Londres há quase uma década. O profissional de saúde está agora em Jersey, uma das ilhas do Canal da Mancha. «Quando via a minha vida como enfermeiro em Portugal percebi que não teria grandes possibilidades de progredir na carreira e de me realizar em termos profissionais e pessoais», conta.
Dali donde está, olha agora para o seu «país desanimado, onde muitos fazem sacrifícios para que uns poucos possam continuar a enriquecer descaradamente».
«As pessoas», prossegue, «precisam ainda de perder muitos dos medos que ainda vêm da ditadura e de se libertar do sistema que continua a proteger as elites». É o que ele pensa e o que dizem muitos que partiram nos últimos anos para o Reino Unido: «É um país bom para se passar férias mas não para se trabalhar».
O enfermeiro vive com a mulher e a filha «mais linda do mundo», enfatiza, babado. Regressar até poderia estar nos planos se o cenário por cá mudasse: «Se tivesse a possibilidade de dar aos meus filhos uma perspectiva de crescerem num país onde se avança pelo mérito e não por quem se conhece ou se paga uns favores… Quem está fora não precisa de apoios e favores para regressar. Precisa é de ver um futuro para o país em que se pode viver e não simplesmente sobreviver». Uma alfinetada aos que acreditam que são necessárias ajudas para fazer regressar ao País os jovens que partiram.
Nuno, tal como muitos que têm Portugal no coração, também tem saudades da família, dos amigos, «das francesinhas e do bacalhau». Vem cá uma meia dúzia de vezes por ano. Considera que nesta nova vaga de emigração já não existe a nostalgia de «ser emigrado». Isto porque, «por um lado, o País está mais aberto e muitos já tiveram experiências no exterior com os programas Erasmus ou Leonardo da Vinci. Por outro, as novas tecnologias e os voos mais baratos aproximam-nos muito mais de quem nos é querido».
Nuno confessa que o mais difícil é sempre partir pela primeira vez. Depois… existe um mundo inteiro para ser descoberto. «Dos aeroportos de Londres partem voos para todos os cantos do mundo e basta sair à rua ou beber um copo num pub para conhecer esses cantos através das pessoas que, sendo de lá, escolheram também Londres para fazer a sua vida. E ter isso em comum é algo que aproxima muito as pessoas e dá lugar a interacções muito interessantes».
O enfermeiro diz que Portugal continua a ser o seu país. Que lhe faz sempre falta. Mas… há sempre um mas. «Pessoalmente, a grande nostalgia que sinto é ao olhar para os excelentes portugueses que temos fora e dentro de Portugal e perceber o potencial que temos enquanto país. Pena é que tanta gente tão prometedora se deixe governar por tão poucos tão medíocres. Acho que não estou errado quando digo que a grande maioria dos mais novos que parte vai desencantado com o seu país por perceber que não há grande futuro para si e para os seus».
Já dizia Eça de Queirós : «Em Portugal, a emigração não é, como em toda a parte, a transbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre».
Sílvia Júlio
Família Cristã