Em 2018 Subiram aos Altares o Papa Paulo VI e D. Óscar Romero

Santos que amaram os pobres

Em Outubro de 2018 foram canonizadas duas figuras marcantes da Igreja do século XX. Ambas com opções fortes pelos pobres, na linha do magistério do Papa, mas duas figuras que, por razões distintas, arrastam poucas multidões na Europa.

No dia 14 de Outubro de 2018 subiram aos altares da Igreja Católica o Papa Paulo VI, que liderou a Igreja entre 1963 e 1968, e D. Óscar Romero, bispo salvadorenho que foi morto enquanto celebrava missa numa capela do Hospital da Divina Providência, na capital de El Salvador. Duas figuras que, aparentemente, pouco terão em comum, excepto o facto de ter sido Paulo VI a nomear D. Óscar Romero, porque vêm de contextos diferentes. No entanto, há um ponto semelhante entre eles e o próprio Papa Francisco: a opção pelos pobres.

Mas nem sempre foi assim para D. Óscar Romero. «É preciso saber enquadrar o D. Óscar em El Salvador, um território sempre governado por catorze famílias tradicionalistas e o clero e os bispos não passavam de “capelães” dessas famílias influentes. Quase sempre essas ternas [conjunto de três nomes que o núncio envia ao Papa quando é necessário nomear um bispo para uma diocese] que eram enviadas para Roma eram filtradas, e os bispos propostos eram tradicionalistas. O Óscar Romero, quando é eleito arcebispo da capital, também é um conservador. No entanto, logo depois da nomeação, dá-se uma conversão. Ao ver a situação daquelas famílias, daquelas pobrezas, e a morte violenta de um jesuíta, no programa de rádio dominical que mantinha começou a causticar toda aquela situação», explica o padre David Barbosa, professor de História na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.

A canonização de D. Óscar Romero tornou-se numa inevitabilidade para a Igreja ainda antes da sua morte. A sua opção pelos pobres, um estilo de vida próximo de pastor, que conflituava com a realidade do episcopado, não só de alguma América Latina, mas principalmente da Europa, granjeou-lhe uma fama de santidade impossível de ser ignorada depois da sua morte. No entanto, as dificuldades no relacionamento e o incómodo que as estruturas hierárquicas do Vaticano sentiam com a figura deste bispo fizeram com que o processo de canonização ficasse dentro de uma gaveta para que fosse o Papa Francisco a retirá-lo de lá. «A pressão da vox populi foi muito forte. O processo hibernou porque a relação com João Paulo II foi difícil, e Bento XVI teve dificuldade por ter sido o seu antecessor com os problemas. Agora ele colhe o verso e o anverso de uma realidade que acompanha a história da Igreja», sublinha o padre David Barbosa.

No dia 6 de Março, a reunião dos cardeais e bispos do dicastério expressou por unanimidade o seu parecer favorável, reconhecendo o milagre que é devido à intercessão de D. Óscar Romero, a cura de uma mulher que estava em perigo de morte devido ao parto. Também nesse dia, o consistório aprovou a canonização de Paulo VI por causa de um milagre atribuído ao antigo Papa do desenvolvimento completo de uma gravidez de alto risco, da qual nasceu uma menina completamente saudável.

Por outro lado, a figura de Paulo VI, muito considerado entre o clero, mas menos entre o povo, oferece poucas dúvidas ao padre David Barbosa. «Foi um grande Papa, que, ao servir de mediador entre duas posições opostas, optou sempre pela fidelidade à Igreja institucional», refere. A história do cardeal Montini é mais carreirista do que a de D. Óscar Romero. O que seria Papa foi sempre um sacerdote e bispo próximo do Vaticano e da Cúria. «Durante toda a sua vida, em momentos importantes, teve de servir de mediador entre duas posições opostas. Isso aconteceu em 1933, com Pio XI, em que ele era o assistente nacional da Federação Universitária Católica Italiana. As criticas deles, como de toda a juventude, iam um bocadinho longe demais na óptima do Vaticano. Em 1933, Pio XI pede-lhe que deixe de ser o assistente nacional», e ele obedece.

Mais tarde, começa a trabalhar como monsenhor na Secretaria de Estado e em 1953 é proposto para receber a púrpura, ele e o cardeal Tardini, mas não aceita.

Afastado da Secretaria de Estado para a arquidiocese de Milão, no que foi visto como uma «promoção para afastar», mantém-se fiel e regressa quando é nomeado cardeal por João XXIII, o Papa que convoca o Concílio Vaticano II, mas morre antes do seu fim, deixando Paulo VI encarregado de o concluir. «João XXIII tinha preparado o Concílio Vaticano II de uma forma rápida, como explica no seu diário: “Vou abri-lo em Outubro e vou clausurá-lo no dia de Natal de 1962”. Estava tudo preparado, e os bispos iam ser chamados apenas para o aplauso, que era a tradição nos sínodos e concílios. Mas aquilo foi turbulento, porque na primeira parte o concílio é agarrado pelo episcopado da Europa Central e todos aqueles esquemas que deviam ser aprovados foram todos postos de lado. Isso foi doloroso, e é interessante que Montini, já cardeal, só tomou a palavra por duas vezes nessa primeira parte, e depois da morte de João XXIII ele é eleito Papa e como Papa teve o mérito de levar o concílio para a frente. Depois da segunda parte, pensou terminar, e depois da terceira deu mesmo a entender que gostava de terminar, mas só termina depois. Foi sempre muito respeitador», garante o padre David Barbosa, que dá o exemplo do que sucedeu com a “Lumen gentium”, a «trave-mestra da doutrina da Igreja». «No primeiro capítulo, começava com a hierarquia e o Povo de Deus. Os bispos, principalmente da Europa Central, começaram a dizer que a hierarquia sai do povo, e o primeiro capítulo tem de ser o povo de Deus. O cardeal de Bruxelas, que tinha confiança com Paulo VI, sobe ao terceiro andar e diz ao Papa que o esquema seria aquele. Sabe-se que Paulo VI disse “discordo”, mas depois aprovou, e assim estamos sempre diante de um Paulo VI que é muito inteligente», refere.

Paulo VI foi também o primeiro Papa a visitar o Santuário de Fátima, num momento particularmente delicado da história portuguesa e europeia. Salazar governava o País e a ditadura do Estado Novo estava num conflito diplomático por causa das posições do Papa relativamente à Índia, onde tinha ocorrido um incidente diplomático com Portugal. «A vinda dele a Portugal, nas circunstâncias em que foi, revelou coragem. Pela primeira vez, o Papa não aterrou na capital, porque ele questionava essa capital, e encontrou aquela solução» de viajar directamente para Monte Real, efectuando uma visita meramente pastoral, e conseguindo contornar o que teria sido uma situação diplomática complicada.

Os tempos eram outros, e por isso o contacto entre D. Óscar Romero e Paulo VI não foi muito frequente. Mas chegaram a estar juntos, e é possível perceber a relação que tinham através das memórias de D. Óscar, citadas pelo jornalista Andrea Tornielli. «Romero, por sua vez, agia na linha do magistério de Paulo VI e da exortação apostólica “Evangelii nuntiandi”, documento ainda actual e fonte de inspiração para o próprio Papa Francisco. O arcebispo mártir conservava no coração a lembrança do último encontro com Montini: ‘Paulo VI apertou a mão direita e segurou-a longamente entre as suas mãos, e eu também apertei com as minhas duas mãos a mão do Papa’. Eu entendo a sua difícil tarefa – disse o Papa Montini –, é um trabalho que pode ser mal interpretado e requer muita paciência e fortaleza. Mas siga em frente com coragem, paciência, força e esperança. O Pontífice referia-se às dificuldades e às incompreensões que Romero viveu em El Salvador, onde a sua proximidade evangélica com os pobres e sua defesa dos últimos foi vista como “marxista”», conta o jornalista.

Esta opção pelos pobres, visível também pela participação de Paulo VI, em 1968, na Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín, que decretou a opção preferencial pelos pobres, chamando a atenção para páginas importantes da Doutrina Social da Igreja, é claramente um dos pontos de convergência entre ambas as figuras.

No entanto, não deixa de ser curioso que se tenham canonizado, ao mesmo tempo, uma figura que sempre defendeu a Igreja institucional e outra que tanto a criticou, embora sempre de uma forma que não a punha em causa. A decisão de canonizar estas duas figuras em conjunto (havia muita expectativa de que D. Óscar Romero fosse canonizado em El Salvador) permite a leitura de uma chamada de atenção do Papa Francisco a todos quantos o criticam, em particular nestes últimos tempos, por causa das polémicas surgidas com os grupos mais conversadores, que chegaram a exigir a resignação do Papa.

Apesar da importância de ambas as figuras, não se registou uma grande multidão em Roma para as cerimónias de canonização. No caso de D. Óscar Romero, porque os seus admiradores estão na América Latina e não tiveram a possibilidades de se deslocar em grande número, e no caso de Paulo VI porque acaba por ser uma figura que não desperta tanta movimentação da parte dos fiéis. Ainda assim, existe muita curiosidade para perceber a importância que terão estes novos santos da Igreja para os fiéis.

RICARDO PERNA 

Família Cristã

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