ANDREW LEONG, PROFESSOR DE ESTUDOS BÍBLICOS DA UNIVERSIDADE DE SÃO JOSÉ, E A INSTITUIÇÃO DO DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS
A novíssima solenidade do “Domingo da Palavra de Deus” – será celebrada pela primeira vez este ano, a 26 de Janeiro – é um convite, feito pelo Papa Francisco aos católicos de todos o mundo, para que aprofundem o amor, a devoção e a fidelidade a Deus e à Sua Palavra, defende Andrew Leong. Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de São José, evoca São Jerónimo para defender que desconhecer as Sagradas Escrituras é desconhecer Jesus Cristo. O jovem docente em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– A Carta Apostólica Aperuit illis, publicada sob a forma de “motu proprio” pelo Papa Francisco, cria o Domingo da Palavra de Deus. A nova solenidade vai ser celebrada, já a partir deste ano, no terceiro Domingo do Tempo Comum, tal como estabeleceu a Cúria Romana. Que importância tem esta nova celebração?
ANDREW LEONG– Desde os primórdios da renovação do movimento bíblico, que foi uma das forças motrizes que conduziram ao Concílio Vaticano II, que o papel que as Sagradas Escrituras devem ter na vida quotidiana dos fiéis tem merecido uma atenção mais abrangente por parte da Igreja. Como São Jerónimo – o grande santo das Escrituras – escreveu a determinada altura: “o desconhecimento das Escrituras é o desconhecimento de Cristo”. Esta ideia é também mencionada na Aperuit illis, quando o Papa escreve que, sem conhecer as Escrituras, ninguém pode dizer que tem uma relação de intimidade com Jesus.
CL– «No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus», escreve João Evangelista…
A.L.– A utilização por parte do Papa Francisco da expressão cunhada por São Jerónimo é particularmente feliz. Na Bíblia, a noção de “conhecimento” não se limita ao que poderíamos chamar de conhecimento objectivo, mas inclui também o conhecimento subjectivo. Ao utilizar esta designação refiro-me à capacidade para estabelecer relações, particularmente relações inter-pessoais. Em várias passagens-chave do documento, no início, no meio e no fim, o Papa Francisco coloca propositadamente ênfase na construção e no reforço do relacionamento entre os fiéis e a Sagrada Escritura. Aparentemente, para o Sumo Pontífice o estudo da Escritura enquanto exercício intelectual não é o principal objectivo neste âmbito, ainda que constitua o alicerce daquilo que ele deseja. Esta relação, de acordo com o Papa, é erguida tendo por base o diálogo e o testemunho da forma como os ensinamentos da Bíblia são acolhidos quotidianamente pela comunidade de crentes. É claro que, para que tal seja possível, cada um de nós tem de “ler, meditar e rezar diariamente com a Sagrada Escritura”. A melhor forma de o fazer, tal como é sugerido em várias ocasiões na Aperuit illis, é a “lectio divina” (a leitura divina).
CL– Ler, meditar, rezar e contemplar. O Domingo continua a ser o melhor dia para usufruir da companhia do Salvador…
A.L.– O Domingo é a altura mais apropriada para celebrar a relação entre Jesus – enquanto “Logos”, Palavra de Deus – e a comunidade de crentes. Esta adequação é evidente no episódio em que o Senhor Ressuscitado se encontra com os dois discípulos que fazem o caminho para Emaús, passagem que é por várias vezes mencionada na Aperuit illis. No Dia do Senhor por excelência, Jesus Ressuscitado apareceu pelo caminho aos dois discípulos, engajando-os com as Escrituras, explicando-lhes o significado messiânico e cristológico que encerram, preparando-os para que O reconheçam como a concretização da promessa divina de Salvação. Há medida que Jesus Ressuscitado os vai engajando com as Escrituras, sentem o coração a arder-lhes por dentro, como eles próprios fazem questão de salientar pouco depois. Mais tarde, quando os discípulos lhe pedem para ficar, Jesus sentou-se com eles à mesa e dividiu o pão. No exacto momento em que o fazia, em que partia o pão, abriram-se-lhes os olhos e reconheceram então quem aquela pessoa – que caminhou com eles e com eles discutiu as Escrituras – era verdadeiramente. No entanto, ninguém deve cometer a tentação de interpretar os dois momentos – a leitura das Escrituras e o reconhecimento de Jesus – como dois actos independentes. Pelo contrário, e tal como o Concílio Vaticano II define, “a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística estão tão intimamente ligadas, que não são mais do que um mesmo e único acto de devoção”.
CL– Sendo a Igreja os fiéis, cabe a estes eternizá-la no tempo. Para tal, é necessário cumprirem com as suas obrigações de depositários e difusores dos ensinamentos de Cristo. A Aperuit illisvem reforçar este dever?
A.L.– Na Constituição Dogmática “Dei Verbum”, o Concílio também ensina que é de uma mesma mesa – a Palavra de Deus e o Corpo de Cristo – o pão da vida é oferecido e distribuído pela comunidade de crentes. O episódio narrado por São Lucas não só ilustra a dimensão eucarística da Palavra de Deus, mas também a sua dimensão ética. A Aperuit illisexorta a comunidade de crentes, ao instituir o Domingo da Palavra de Deus, “a esforçar-se quotidianamente para dar corpo e testemunhar os ensinamentos” da Sagrada Escritura. Com a orientação que recebem nas homilias feitas nas Missas de Domingo os crentes conseguem “alcançar a beleza da Palavra de Deus e zelar para aplicar essa beleza na sua vivência quotidiana”. Este é um desafio difícil que todos os cristãos devem confrontar, mas a profundidade do amor que um tal desafio exige em nada se compara com o amor misericordioso que Cristo demonstrou na Cruz. Para imitar Cristo, particularmente no que diz respeito a esta dimensão, é preciso estar disponível para experienciar a maior das amarguras, mas é através dela que somos chamados a provar a doçura de partilhar o mesmo tipo de amargura a que Jesus se submeteu por nós. Não menos importante, é importante não perder a noção da dimensão missionária que os crentes devem manter com a Palavra de Deus. No episódio narrado por São Lucas, os dois discípulos, depois de reconhecerem Jesus Ressuscitado, regressaram de imediato para junto dos onze apóstolos e dos restantes companheiros para relatar a Boa Nova do que tinham testemunhado. De um mesmo modo, depois de ouvirmos diligentemente a Palavra de Deus, somos engajados e enviados “a proclamar a sua insondável riqueza” pelos quatro cantos do mundo. Esta é a razão pela qual se julgou apropriado “celebrar o Rito da Instituição dos Leitores”, uma vez que são eles que proclama a Palavra de Deus na Liturgia. Deste modo, na Aperuit illis, ao estabelecer a celebração do Domingo da Palavra de Deus, o Papa Francisco coloca em destaque o significado e a dimensão eucarística, ética, comunitária e missionária da Palavra de Deus.
Marco Carvalho