O jesuíta apóstata.
Cristóvão Ferreira nasce por volta de 1580 em Zibreira, Torres Vedras, e entra na Sociedade de Jesus no final do ano de 1596. Depois de cumprir o período de noviciado, faz os primeiros votos em Dezembro de 1598, em Coimbra, onde estuda durante os dois anos seguintes. A 4 de Abril de 1600, embarca para a Índia a bordo do navio “São Valentim”, tendo chegado a Goa alguns meses depois. A “Roma do Oriente” foi apenas o primeiro passo na sua jornada rumo ao Extremo Oriente. Após recuperar dos rigores dessa viagem, Ferreira e vários outros companheiros que estavam destinados às missões da China e Japão partiram novamente, desta feita para Macau. Uma vez aí chegado, Ferreira retoma os seus estudos no Colégio da Madre de Deus. Em 1608 é ordenado sacerdote e, finalmente, a 16 de Maio de 1609, deixa Macau rumo ao Japão.
A vida de Cristóvão Ferreira no Japão ilustra de forma dramática a extrema dureza do ambiente local nas últimas décadas da presença portuguesa nesse arquipélago. Até 1612 Ferreira habita num seminário, na cidade de Arima, onde se familiariza com a língua e cultura japonesas, e possivelmente chega até a ministrar aulas de Latim. Nesse mesmo ano, no seguimento de uma enorme perseguição aos cristãos, que foi aumentando dia após dia, o seminário teve de ser evacuado e Ferreira é enviado a Quioto, aparentemente para substituir Carlo Spinola, que fora entretanto nomeado tesoureiro da missão. Depois da proclamação do Édito de 1614, ordenando a expulsão de todos os missionários do solo japonês, Ferreira decide ficar no País ilegalmente e em 1617 é nomeado secretário do Provincial Mateus de Couros. Nessa época, o experiente Mateus de Couros encontrava-se fisicamente bastante debilitado, facto que obrigou Cristóvão Ferreira a redobrar esforços no desempenho das suas funções. Tudo se complica ainda mais com a captura do tesoureiro Spinola, que seria martirizado alguns anos mais tarde. Até 1621, Ferreira desempenha com o maior zelo e em condições quase inimagináveis todas as suas obrigações. Nesse mesmo ano, com a indicação de um novo Provincial (Francisco Pacheco), Ferreira é libertado das suas responsabilidades. Mas essa “folga” não duraria muito. Em 1625, Pacheco é capturado – e meses mais tarde martirizado – e o cada vez mais exausto Mateus de Couros assume de novo o cargo da Província. Mais uma vez convoca Ferreira como secretário. A partir desse momento os eventos precipitam-se muito rapidamente. Exausto, Mateus de Couros morre em 1632, deixando a responsabilidade da missão a Sebastião Vieira, o mais antigo dos sacerdotes professos. No entanto, nesse mesmo ano Vieira é capturado, deixando Ferreira como vice-Provincial.
A situação dos missionários em solo nipónico torna-se insustentável e, no ano seguinte, é a vez de Cristóvão Ferreira cair nas garras dos soldados dos dáimios. Em 18 de Outubro de 1633, com 53 anos de idade e 37 anos como jesuíta – mais de vinte dos quais despendidos no Japão – Cristóvão Ferreira enfrenta, como tantos outros missionários antes dele, a terrível “provação do poço”. Depois de ser torturado durante seis horas, Ferreira não resiste e pisa o “fumie” (a imagem de Jesus Cristo de bronze numa tábua), o método encontrado pelas autoridades nipónicas para obrigar os cristãos locais a denunciarem a sua Fé. A notícia da apostasia de Cristóvão Ferreira – a renúncia à Fé Cristã – causa grande comoção na Europa e particularmente na Companhia de Jesus. O choque provocado por essa notícia é agravado pelo facto de que os primeiros relatos que chegavam ao Ocidente apresentavam Ferreira como mais um dos muitos mártires cujo sacrifício era então exaltado em toda a Europa. Aqueles que o conheciam não se conformavam com a ideia de que o tão prestigiado e batalhador Cristóvão Ferreira alguma vez pudesse negar a Fé Cristã, apesar dos extremos tormentos a que fora sujeito. A perturbação seria maior ainda quando se aperceberam de que o jesuíta não só apostatara como passara a colaborar com as autoridades japonesas.
Cristóvão Ferreira, que adoptaria o nome budista Sawano Chuan – depois de se tornar um verdadeiro conhecedor da realidade japonesa que seria transmitida ao mundo através dos vários livros que ali publicou – morreu em 1652 em Nagasáqui, onde não há hoje uma única referência à sua pessoa.
O conhecido jesuíta Diego Yuuki, residente no Japão há largos anos, considera que Ferreira fez um contra-testemunho, “pois esteve durante vinte anos ao serviço dos seus perseguidores”.
O filme “Olhos da Ásia” (1996), do realizador português José Mário Grilo, aborda a vida de Cristóvão Ferreira, mas já antes, em 1971, no Japão, por iniciativa do cineasta Masahiro Shinoda, seria feita a primeira adaptação ao cinema do romance “Silêncio”, do japonês Shusaku Endo, obra que mereceria um segundo olhar, desta feita do consagrado norte-americano Martin Scorsese. Ambas as películas retratam a jornada de dois jesuítas no Japão, Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe, precisamente em busca do paradeiro de Cristóvão Ferreira. A versão de Scorsese teve a sua estreia mundial no início do corrente ano e pode agora ser vista nos cinemas locais. No Cineteatro do Centro Diocesano dos Meios de Comunicação Social e no Galaxy.
Joaquim Magalhães de Castro