Hanna Jallouf, um frade resistente
O recém-nomeado vigário apostólico de Aleppo para os católicos do Rito Latino, o sírio Hanna Jallouf, OFM, frade menor da Custódia da Terra Santa, conhece melhor do que ninguém a realidade daquela atribulada região. Foi um dos poucos sacerdotes que durante os longos anos de guerra continuou a servir e a confortar, «inspirado pelo dom dos Sacramentos e da Palavra de Deus», as pequenas comunidades cristãs nos territórios da província de Idlib, controlados durante a guerra pelas milícias jihadistas, áreas que até hoje, recorde-se, escapam à administração do Governo de Damasco.
Hoje, com 71 anos de idade, o padre Hanna é um homem cultivado. Além das formações em Filosofia e Teologia, obtidas na cidade italiana de Assis, concluiu ainda duas outras licenciaturas. Uma em História, em Beirute; e outra, em Pastoral Juvenil e Catequese, na Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Até à sua nomeação – pelo Santo Padre a 5 de Julho passado – para o cargo que agora ocupa, o padre Hanna Jallouf exercia as funções de pároco em Qunaya, a sua aldeia natal, no vale do rio Orontes, onde existem outras duas povoações cristãs (Yacubiyeh e Jdeideh). Enquanto os demais religiosos se afastavam para bem longe, com receio das milícias anti-Assad, o padre Hanna e o seu confrade Luai Bsciarat mantiveram-se firmes nas respectivas paróquias, então mais do que nunca, próximos dos fiéis.
Sob a novel governança islamista, cedo começaram os abusos contra a população local: exigências de novos impostos, apreensão de bens e terras e ocupação de casas vazias pela milícia jihadista. Não obstante, e contra todas as expectativas, o padre Hanna, dando provas de um grande poder de encaixe, foi conseguindo manter canais de contacto com os grupos armados. Os novos senhores forçaram-no a ocultar com panos as estátuas da Nossa Senhora e dos santos e proibiram o toque dos sinos e o ensino da Doutrina Cristã nas escolas. Os fiéis, esses, relutantemente obedeceram, «aprendendo a viver como cristãos sob as ordens de quem comanda pro tempore», incluindo os temíveis milicianos jihadistas. Primeiro, os do Estado Islâmico; depois, os da Jabhat al-Nusra – o que não foi coisa pouca tendo em conta o violento historial de ambos os grupos terroristas. Miraculosamente, a paróquia e o convento locais mantiveram-se abertos. A cada cinco ou seis meses, o padre Hanna era autorizado a sair da área controlada pelos jihadistas, aproveitando, numa dessas ocasiões, para ir ao Líbano, onde foi submetido a uma pequena intervenção cirúrgica. Após cada uma dessas curtas viagens, invariavelmente arriscadas, o padre Hanna sempre voltava à sua aldeia para retomar a missão pastoral.
Em Outubro de 2014, pouco depois de ter denunciado junto do tribunal islâmico – órgão criado na zona sob controlo dos islamitas para administrar a justiça de acordo com a lei islâmica – as expropriações e os saques sofridos pelos seus paroquianos às mãos dos islamistas, acabou por ser sequestrado pelos jihadistas da Jabhat al-Nusra, juntamente com vinte dos seus paroquianos. Felizmente, sacerdote e fiéis seriam libertados poucos dias depois, tendo o primeiro permanecido em prisão domiciliária no convento de Qunaya. Uma das acusações que lhe imputavam era a de ser «colaboracionista do Governo do Presidente Bashar al-Assad», afirmação que o sacerdote veemente negou. Noticiava na altura a France-Presse que “os rebeldes estavam zangados com o padre Jallouf porque este se recusara a dar-lhes azeitonas colhidas nas árvores do terreno do convento”. Na verdade, os militantes da Jabhat al-Nusra simplesmente tentavam apropriara-se das propriedades franciscanas em Qunaya, facto que levou o padre Hanna a apresentar queixa a um tribunal religioso.
O sequestro fora o mais recente de uma série de ataques a religiosos cristãos no decorrer da guerra civil síria. Em Abril desse mesmo ano foi assassinado o jesuíta Frans van der Lugt, envolvido no diálogo inter-religioso e responsável pela construção de um centro que albergava cerca de quarenta crianças com deficiência mental. Em Dezembro de 2013, várias freiras ortodoxas gregas foram raptadas pela Jabhat al-Nusra perto de Damasco, mas, felizmente, seriam libertadas meses depois. Em Julho desse mesmo ano era sequestrado, em Raqqa, a cidade controlada pelo Estado Islâmico, o jesuíta Paolo Dall’Oglio, até hoje com paradeiro desconhecido. O mesmo acontece com os bispos gregos e siríaco-ortodoxos de Aleppo, Boulos Yazigi e Yohanna Ibrahim, raptados por islamistas também em 2013.
Em Abril de 2020, com a pandemia do Covid-19 instalada na Síria e os conflitos na província de Idlib em pleno recrudescimento, o padre Hanna pediu a todos que ajudassem os habitantes do vale do Orontes a perceber que «Cristo também ressuscitou por eles» e que não iriam ser «abandonados pela Igreja universal».
Numa carta divulgada pela organização “Vamos ajudar a Síria”, o sacerdote sírio descreveu brevemente o contexto em que ele e o padre Luai Bsciarat, malgrado as dificuldades, continuaram a desenvolver o seu trabalho pastoral: “A comunidade cristã que aqui permaneceu, nas aldeias de Orontes, totaliza cerca de seiscentas pessoas. Ou seja, duzentas famílias que pertencem tanto à Igreja Católica como às Igrejas Ortodoxa Arménia e Ortodoxa Grega. Somos os únicos religiosos que aqui se mantêm”.
Os franciscanos estão presentes na Síria há já oito séculos, tendo chegado a Qunaya em 1878.
Joaquim Magalhães de Castro