Missão cumprida em Urrittaung
Perante a mais sagrada representação do seu mestre e senhor, “todos os pagãos do nosso grupo” – nota Sebastião Manrique – se prostraram perante a “Grande Imagem” e tocaram o chão com os seus antebraços três vezes, agradecendo a passagem naquelas perigosas montanhas. Por pagãos subentende o frade agostinho os escravos hindus e os guardas arracaneses budistas. Também os escravos muçulmanos, à semelhança do sacerdote, olhavam com desdém todo aquele cenário. E alguns de Manrique se aproximaram assegurando, “num aparte confidencial”, o quanto condenavam a idolatria, embora a sua condição de prisioneiros os impedisse de interferir. O português, porém, não hesitou em manifestar o seu desagrado aproximando-se daqueles que idolatravam, aconselhando-os “a darem graças ao verdadeiro Deus e não àquela estátua de pedra”.
Retomada a marcha, um dos escravos, homem de provecta idade, tropeçou e esteve prestes a cair. Empurraram-no com rudeza os guardas arracaneses, mas Manrique, apesar dos protestos, mandou desamarrar o prisioneiro e deu-lhe um lugar no dorso do elefante. Este acto de piedade agradou os restantes muçulmanos que se afeiçoaram ainda mais aquele padre com quem tinham já em comum a aversão aos ídolos.
Durante a tarde os viajantes atravessaram com dificuldade vários campos de arroz alagados nos arredores de “Peroem” e, “já muito cansados”, entraram nessa cidade ao anoitecer. Mandou-os instalar o governador numa estalagem, onde prontamente Manrique, de crucifixo na mão, recitou o “Te Deum” e a Ladainha de Nossa Senhora “diante de todos os cristãos” que o acompanhavam.
Na manhã seguinte, dois palanquins vieram buscá-los para ver o governador, cuja obrigação era tratar com deferência todos os estrangeiros ilustres, especialmente quando estes levavam presentes para o soberano… Tibau e Manrique deixaram isso bem claro à chegada e, como incentivo adicional, enviaram ao governador uma sinecura de “quatro bandejas chinesas douradas empilhadas com cravo, canela, pimenta e cardamomo”, especiarias localmente inacessíveis e que haviam sido importadas para Dianga por navios portugueses vindos de Java ou Samatra. Satisfeito com o presente, informou-os o arracanês que para chegar a Mrauk U era preciso atravessar a foz do rio Mayu (então conhecido como Golfo de Maum), de onde se chegava à capital por rios e riachos. Infelizmente, a monção estava ali em todo o seu fulgor e o melhor seria aguardar pela lua nova, “prevista para dentro de quatro dias”, altura em que melhorariam as condições climatéricas. Mas logo lembrou o capitão Tibau que os assuntos trazidos àquele reino eram tão urgentes que não admitiam compassos de espera. Ordenou então o governador que se preparasse uma galera “com trinta e seis remadores” e foi anunciada a partida para a manhã seguinte, independentemente do clima. Saberiam os portugueses nessa noite que a frota arracanesa, “com ordens para atacar Dianga”, estava reunida no rio Kaladan num lugar chamado Urrittaung, “a meio caminho entre eles e a capital”.
Na manhã seguinte a tempestade tinha redobrado de intensidade e diante disso exclamou o piloto da galera: “Estamos perdidos, esses portugueses são filhos do mar; nem a morte os assusta na água”. Dando o exemplo, o capitão Tibau agarrou-se a um dos remos e exortou os remadores a cumprir a sua tarefa. E estes, “amedrontados, mas obedientes, curvaram-se sobre os remos”. A travessia foi terrível. Se as condições eram duras junto à margem, pior se tornariam à medida que eles se aproximavam do centro do estuário, pois aí se depararam com o “olho da tempestade”. Manrique, sempre de crucifixo na mão, apelava ao socorro divino e, embora o vento e o estrondo das ondas tapasses a sua voz, dava a absolvição a todos os católicos. Era tão fraca a visibilidade que dificilmente se vislumbrava a proa do barco, e encontrar a abertura do riacho Kudaung, o local para onde se dirigiam, foi tarefa extremamente difícil. Só no final da tarde lograram atingir a margem oposta. A tripulação, em êxtase de alívio, desembarcou e beijou o chão, “por mais lamacento que estivesse”. Só então, completamente exaustos, voltaram a bordo e estiraram-se no chão, permanecendo numa espécie de “durante mais de uma hora”.
Urrittaung situava-se a vinte milhas a nordeste. No decorrer da manhã chegaram à alfândega dessa cidade e de imediato enviaram um mensageiro, com “presentes de especiarias e sedas chinesas”, ao almirante da frota arracanesa. Havia que evitar a tudo custo que essa armada punitiva avançasse para Dianga! O futuro de todos os católicos daquela praça estava nas suas mãos! Na conversa que o frade e o capitão tiveram com o almirante foi explicado qual o caminho que tinham tomado, as provações pelas quais tinham passado e apontado francamente o objectivo da sua missão. Ou seja: as vis alegações feitas contra a lealdade dos capitães portugueses residentes em Dianga eram totalmente infundadas. Manrique sugeria que fosse feita uma investigação mais aprofundada sobre a conduta daqueles e foi lembrando que o facto dos residentes terem enviado “esse seu vigário”, provava a sua inocência e “a crença de que Sua Majestade continuaria a manter total confiança” neles. Face a tamanha sinceridade e paixão convenceu-se o almirante de que um erro havia sido cometido e aceitou aguardar a chegada dos emissários portugueses à Corte de Arracão antes de tomar qualquer medida. E assim, graças à coragem e tacto diplomático do frade Sebastião Manrique, pode continuar vibrante e activa a comunidade cristã de Dianga.
Joaquim Magalhães de Castro