Nos pântanos do delta do Ganges
Quando Sebastião Manrique chegou a Dianga esperavam-no missivas do provincial da Ordem e do vice-rei de Goa, ordenando que se dirigisse a Banja, em Orissa, para trabalho missionário, claro, mas sobretudo para negociar um acordo comercial com o governador de Hijli, cidade portuária frequentada por inúmeros mercadores portugueses. Acompanhado por um certo Trigueiros e três moços locais cristãos, o frade abalou pela calada da noite, como convinha, rumo a Sundiva. E daí até à foz do Hugli, penetrando depois nos meandros de Sundarbans, vasta área de mangal no delta formado pela confluência dos rios Ganges, Brahmaputra e Meghna, na baía de Bengala. Mesmo na época seca toda essa região mais não era do que um pântano infestado de crocodilos nas margens e rinocerontes, e tigres um pouco mais para o interior.
Ao décimo primeiro dia de viagem, os remadores, cansados da tarefa, acharam que mereciam algum descanso e sem esperar licença de quem lhes pagava o serviço amarraram a embarcação (uma pequena galé) a uma árvore e foram dar uns mergulhos antes de preparar uma refeição decente. Desembarcaram também – que remédio! – Manrique e companhia. Mas como todo o cuidado era pouco, antes da descontração postou-se em cima de uma árvore um atalaia. Havia que evitar a todo o custo as patrulhas marítimas locais, sempre à cata de embarcações provenientes do “porto pirata” de Dianga. Essa fôra, aliás, a razão da escolha de tal rota. Mal cozia o arroz e já o sentinela dava o alerta: aproximava-se um barco-patrulha. Escapuliram-se os remadores para a mata e deles nunca mais ninguém ouviu falar! Manrique e companheiros apenas tiveram tempo de pegar nas armas de fogo, deixando o resto dos pertences na galé, inclusive o hábito de Manrique, conveniente trunfo, pois também o padre, humano que era, aproveitara o intervalo para se banhar. Ordenaram os fiscais, armados com arcos e flechas, que se rendessem os portugueses, e estes, à laia de resposta, mostraram-lhes os mosquetes, gesto que demoveu o avanço dos arqueiros que se ficaram pelas ameaças. Que não sairiam dali vivos! Que morreriam de fome ou seriam comidos pelos tigres! Resposta pronta a de Manrique, homem de Fé: “Deus em Sua infinita misericórdia nos livrará de quaisquer perigos que possam nos cercar”. Vendo-os tão seguros de si, abalaram os rondas com a galé a reboque, deixando Manrique e os quatro camaradas encalhados no meio de pântanos que se estendiam por várias milhas em todas as direcções. Decidiram, mesmo assim, tentar encontrar terra habitada… Em vão!
Extenuados pelo calor abrasivo e com as pernas cobertas de sanguessugas, recolheram-se no cimo de árvores assim que a noite caiu, temendo os tigres cujos rastos haviam já sido assinalados. Mas os mosquitos não os deixaram dormir e na manhã seguinte acharam por bem retroceder. Uma longa marcha trouxe-os, “uma hora antes do pôr-do-sol”, ao local onde tinham desembarcado. Aí encontraram sobejas de arroz deixadas pelas patrulhas e com elas puderam reconfortar o estômago e preparar víveres para levar para o caminho. Essa noite puderam acender uma fogueira que manteve os mosquitos afastados. Caminharam no dia seguinte ao longo da margem do riacho por uma selva baixa, às vezes pantanosa, sem avistar qualquer embarcação. Com o crepúsculo chegaram a uma clareira, prontos para mais uma sofrida noite. Decidiram na manhã seguinte atravessar o córrego e tentar a sorte na outra margem. Mas antes havia que escorraçar os crocodilos, sempre à espreita, com uma saraivada de pelouros. Não obstante, quando um dos mancebos entrou na água, do mangal saiu disparado um enorme sáurio que o derrubou com a cauda, arrastando o seu corpo para a água, e tudo o que do infortunado doravante se viu foi uma mancha vermelha a subir à superfície… Aconteceu tudo tão de repente que nem para um disparo houve tempo e assim, profundamente abalados com o incidente, escreve Manrique, “passámos dois dias e meio com os nossos olhos fixos no espectáculo da morte, que devido ao nosso estado de desespero parecia cada vez mais próximo”.
Ao fim da manhã do terceiro dia, estavam eles sentados na margem em profundo desânimo quando avistaram uma canoa com dois homens. Temendo poder assustá-los, Manrique, Trigueiros e um dos rapazes esconderam-se atrás de uns arbustos, deixando o outro a solicitar assistência; e só quando os forasteiros se prestaram a ajudar é que revelaram a sua presença. Ao deparar com os dois portugueses armados, os barqueiros, aterrorizados, aprontaram-se para dar às de vila Diogo. Ordenou Manrique, sem hesitar, que parassem, caso contrário disparariam. Intimidados, os nativos atiraram-se aos pés dos estrangeiros suplicando-lhes que não os vendessem como escravos aos arracaneses. Recorde-se que naquela época abundavam naquelas paragens centos de piratas, portugueses e não só, responsáveis pelas pilhagens de aldeias inteiras, e cativação dos seus habitantes para depois os vender, ora a arracaneses, ora a mogóis, ora aos rajás locais. Dianga e Sundiva, como já vimos, albergavam muita dessa gente, sem grei, lei ou Fé.
Joaquim Magalhães de Castro