CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 70

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 70

Mrauk U, uma cidade em festa

Ao dealbar de 23 de Janeiro de 1635 um disparo de canhão acordou a cidade, seguindo-se o som de tambores, gongos e trombetas vindo do cimo das muralhas, dos mosteiros e dos barcos que se moviam nos canais. Estes eram sinais destinados à nobreza oficial para que se apressasse a tomar assento no Salão de Audiências, o principal do palácio real, pois as cerimónias para a coroação do rei Thiri Thudhamma iriam começar. Ei-los, os fidalgos, altivos e bem cheirosos no dorso dos seus elefantes, cada um deles tentando ofuscar o rival em termos de vestimenta, e invariavelmente acompanhados por séquitos de jovens escolhidos a dedo, “pela aparência e porte”. Alguns dos fidalgotes, habituados a exibir as habilidades com os paquidermes, em ocasião tão importante não tinham outro remédio senão ser conduzidos pelos respectivos servos. Ao entrar na fortaleza de muralha tripla nasceu o Sol, tendo os seus raios resplandecido nos telhados dourados e como sempre “tão brilhantemente que os viajantes muitas vezes pensavam que o palácio era banhado a ouro”.

Sustentava o tecto do Salão de Audiências, “decorado com muita fantasia”, um sem número de pilares de laca dourada e vermelha. Fora nesse vestíbulo, aberto em três lados, que Manrique avistara parte do Tesouro Real durante a primeira visita ao palácio. Estava agora inteiramente tapetado e adornado com insígnias, vasilhame dourado e estandartes emblemáticos. No meio da única parede, a janela do trono, ocultada por um cortinado de cetim verde com flores bordadas a fio de ouro e incrustadas com rubis, safiras e esmeraldas. Sentava-se ao lado de Manrique um capitão português com uma mão de prata, pois perdera a própria num duelo. Ao aperceber-se do facto o mestre de cerimónias segredou ao frade que o militar deveria sair pois a presença de um mutilado “na sagrada cerimónia de coroação de Sua Majestade” trazia má sorte. Indignado, Manrique repreendeu o pagão: «– Se ignoro esse vosso costume é porque ele não faz parte da minha Fé, que é a verdadeira». Debalde. Insistiu o mestre de cerimónias, «– são regras do palácio», e o militar teve mesmo de ir embora.

Ao som do tambor abriu-se a cortina e todos se prostraram. Eis Thiri Thudhamma, alapado num sólio de prata apoiado em quatro elefantes, também de prata. Vestia um longo casaco de veludo azul celeste bordado com pérolas e outras pedras preciosas. Nas orelhas brilhavam os já mencionados brincos de rubi “do tamanho de um ovo de galinha pequena que o avô tinha trazido de Pegu”. Nos degraus do trono estavam os doze rajás recentemente empossados, dispostos em duas fileiras, cada um com a sua coroa e ceptro. Atrás deles, duas damas de companhia ricamente vestidas sacudiam enormes leques. A etiqueta proibia os convidados de olhar este bem preparado cenário. Súbditos que eram, deviam permanecer com os olhos no chão e em silêncio total.

O capelão real deu início à cerimónia avisando desde logo que a coroação não ocorreria no salão, antes no pagode de Shitthaung, a meia milha do palácio. Seria lá que o Shitthaung Hpongri, o abade-mor, iria coroar e abençoar Thiri Thudhamma. Referiu depois um longo panegírico na língua da Corte, bem mais elaborada que o arracanês comum. Embora não pudesse acompanhar com precisão o que foi dito, Manrique entendeu o essencial. O capelão comparava o rei a um santo, ou salvador, destinado a tornar-se num Buda. “Quando obtivesse onisciência, seria, sem dúvida, o Senhor do Mundo, a quem os reis da terra viriam prestar vassalagem, como agora o faziam os doze ‘reis’ ali presentes, esses outros se ajoelhariam e entregariam as suas coroas, até que ele achasse adequado coroá-los novamente. Então, como um redentor, a sua luz brilharia sobre o mundo”. Sobre a Humanidade despontaria uma nova era, findos o sofrimento, a injustiça e a opressão. Seria instaurado o Reino da Compaixão! O capelão era bom orador, e Manrique ouviu-o com um certo desprezo, certamente a pensar nos milhares de inocentes sacrificados para satisfazer as superstições e caprichos do rei e de quem o rodeava.

Thiri Thudhamma manteve-se imóvel, sem pestanejar, embora o discurso durasse uma hora inteira. Parecia ter caído em transe, “como se ouvir expor o seu sonho mais querido com tal riqueza de palavras tivesse-o já arrebatado ao paraíso”, comenta Maurice Collis na análise que faz ao relato do frade. Terminado o discurso do capelão, correram a cortinado sobre a janela, dando por terminada a primeira parte da cerimónia. Seguiu-se a procissão até ao pagode de Shitthaung, composta pelos doze reis e seus assistentes, todos os grandes do reino, um corpo de funcionários domésticos, oficiais do exército e um contingente de oitenta monges, todos a pé, indo o rei na rectaguarda rodeado por cem pajens. O caminho, de acordo com um costume imemorial, havia sido transformado numa “estrada espiritual”, acarpetado em toda a sua extensão com lençóis de algodão colorido e, a intervalos, cobrindo as próprias paredes das casas. Um silêncio sepulcral reinava no cortejo, em contraste absoluto com a procissões desordenadas e até tumultuosas dos rajas das províncias anteriormente coroados.

Joaquim Magalhães de Castro

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