O engenho militar lusitano
Antes de visitar os dois principais monumentos de Mrauk U, valendo-me de uma preciosa bicicleta alugada, opto por fazer um reconhecimento do terreno. Decido começar pelo Ratana Man Aung, um dos cinco pagodes mais reverenciados da antiga capital. Não há vivalma por aqui, pelo que o monumento está por minha conta. De forma octogonal e rodeado por um muro em excelente estado de conservação, foi construído este compacto pagode em 1652, reinava Sanda Thudamma, governante imoral e mulherengo que transitaria para a posteridade com o rótulo de “rei pirata”. Bem demonstrativas do período áureo que marcou a sua construção, não só a grandiosidade da estrutura em si mas também a existência de um terreiro adjacente, no lado norte do templo, onde se desenrolavam as concorridas competições de arco e flecha com a presença de elefantes e cavalos. Desde o primeiro momento em que lhes pus os olhos em cima me pareceram estranhamente familiares todas estas estruturas de cunho marcial, deveras singulares, sem dúvida, e que indiciam mão portuguesa na sua concepção. No caso do Ratana Man Aung, nem é preciso transpor qualquer degrau para chegar a esta conclusão:
Evocam contornos já vistos o muro e os frontões das quatro entradas, e nas paredes do zimbório, lá está, o omnipresente elemento decorativo em espiral tão comum à arquitectura dita colonial e que em Portugal podemos encontrar nas fachadas de inúmeras igrejas e capelas, das mais recentes às remotas tardio-românicas ou góticas. No caso particular, culminando as alongadas linhas curvilíneas de toda a frontaria tal como acontece na igreja de Santo Aleixo, concelho de Monforte, na igreja matriz de Estombar, no Algarve, na igreja de Nossa Senhora da Apresentação, em Aveiro – aqui, com dois magníficos painéis de azulejos com motivos hagiográficos –, ou ainda na igreja da Misericórdia em Bragança, cuja origem remonta a 1518. E isto, só para vos citar alguns exemplos, aproveitando o ensejo para manifestar uma vez mais a minha estupefacção por se continuar a ignorar, menosprezar ou relativizar, nos meios académicos da especialidade, essa evidência-tão-evidente que é o selo da arquitectura portuguesa em tudo o que é construção pela Ásia fora. É preciso ser cego para o não constatar!
A presença de ladrilhos aberrantes – nada discretos e um perigo em tempo chuvoso – nas escadarias de acesso e até nas zonas interiores dos templos, como é caso do deslizante “tapete” de mosaicos verdes que nos conduz da entrada oeste à estupa, é uma clara falha do departamento de arqueologia local; e, infelizmente, não é caso único. Partilha todo este amplo espaço, com uma única árvore – uma bodhi, ficus religiosa, “à sombra da qual atingiu Sidarta o nirvana” –, um pavilhão tipo hangar de aviões e cuja fachada, aí vamos de novo!, nos remete para os frontispícios das igrejas que fomos plantando pela Ásia e pelo Brasil – com particular incidência no litoral da capitânia de São Paulo, da cidade de Parati até Paranaguá, mas também em Belém do Pará ou no Maranhão –, com os típicos frontões ondulados constituídos por uma única e sinuosa curva, como a representação simbólica de uma onda a rebentar.
No caso do referido hangar (sala de ordenação?) a similaridade é demasiado óbvia para me deixar com dúvidas. A porta ogival, nada comum nos templos budistas, lembra a entrada de um castelo, e até os respiradores nas paredes laterais em forma de cruz, exactamente como as seteiras das nossas cidadelas da raia, parecem sustentar a minha tese. Mesmo por cima da entrada do hangar reparo num florão em alto-relevo onde também estão representadas as usuais espirais, neste caso acompanhadas de uns quantos enfeites vegetais. No interior, de tecto em abóboda e chão coberto de ladrilhos, preenchem o espaço um monte de budas de diversos tamanhos e de corpo dourado, cabelo preto, unhas e lábios vermelhos carmesim, e o terceiro olho da praxe bem no meio da testa. Apresentam-se sentados, como é habitual, de pernas entrecruzadas, com a mão direita em cima da planta do pé esquerdo e a mão esquerda encostada ao tornozelo do pé direito e com a palma virada para dentro.
De novo no exterior, registo outro curioso pormenor: azulejos de fundo branco e letras azuis, localmente designados de “auá”, com a função de placa informativa, que voltarei a presenciar noutros locais de Mrauk U, nomeadamente em todo o muro exterior do mosteiro budista. Esta é, sem dúvida, distintiva característica desta região (inexistente noutras partes da Birmânia), e não me admirava nada que tivesse proveniência portuguesa. A este respeito, vêm-me à memória os quadradinhos azuis e brancos presentes nas paredes interiores de alguns dos mosteiros etíopes disseminados nas margens e ilhotas do lago Tana, no fundo uma tentativa de replicação, bastante naive, há que dizê-lo, da azulejaria patente em larga escala nos nossos mosteiros e igrejas e naqueles que deixámos no Brasil onde esse tipo de arte atingiria refinada expressão.
Ao sair do recinto, apercebo-me que a portada do acesso principal ao pagode se assemelha, na sua forma, ao arco dos vice-reis na Velha Goa, ou até a outras portadas menos famosas dos palácios portugueses esquecidos nas ruínas de Baçaim. E enquanto, à coca, aguardo alguém que me ajude a melhor compor o enquadramento fotografia, reparo que nos quatro cantos da muralha há pilares em forma de sino e em toda a extensão da mesma os algerozes assemelham-se aos dos nossos castelos.
Joaquim Magalhães de Castro