CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 29

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 29

Um desabafo de revolta

No que se refere aos portugueses da actualidade, o senhor Aung, apesar da sua vasta instrução, apenas conhece os feitos do Cristiano Ronaldo (o futebol, sempre o futebol). Porém, sabe que “sabon” é legado nosso, até porque os birmaneses a esse imprescindível item da higiene pessoal denominam “sapia”. A charla depressa resvala para a política, tal é a vontade de desabafar. «Estamos já há demasiado tempo sob domínio birmanês. Por isso muitos dos jovens decidiram incorporar as fileiras do exército arracanês para lutar pela independência da nossa terra». Aung diz isto sem pestanejar. Não há qualquer hesitação ou olhar receoso a ver se das paredes crescem ouvidos. Nada tem a perder e imagino que o faria com igual despudor numa praça pública. De facto, que temos nós a perder quando passamos dos oitenta?

Perdidos para sempre, esses sim, muitos dos vocábulos da fala local, no entender de Aung devido precisamente «a esta nossa crónica dependência dos birmaneses já com mais de um século». O professor está a ser modesto. Arracão deixou de o ser em 1784, após a conquista birmanesa e subsequente devastação de Mrauk U, a execução de milhares de pessoas e a deportação de outras tantas para as planícies da Birmânia. O seu território seria cedido à Grã-Bretanha em 1826 na sequência do Tratado de Yandabo, que poria fim à primeira das guerras anglo-birmanesas, e depois, em 1852, consumada a total ocupação britânica, fundido na Baixa Birmânia.

Recuando muitíssimo mais no tempo o professor Aung decide acordar Ptolomeu, o geógrafo que pela primeira vez usou o termo “Arracão”, e tal evocação incita-o a levantar-se de novo para ir buscar um outro livro: «Quero mostrar-lhe uma coisa». Desta vez retira da estante um álbum fotográfico intitulado “Burma’s Lost Kingdoms: Splendors of Arakan” da autoria da investigadora australiana Pamela Gutman, amiga de longa data. Folheia-o com alguma sofreguidão e enquanto não encontra o que tem para me mostrar vai explicando alguns dos conteúdos, sobretudo de jaez fotográfica. Aqui, uma cena amorosa entre os míticos Garuda e Ganesh – «a nossa influência cultural é muito hindu» –; ali, uma sala de oração; acolá, um trecho de escrita arracanesa, «mais antiga do que a de Bagan».

Vejo sobretudo muitos monumentos. O professor alerta desde logo para as alterações radicais entretanto operadas em muitos deles, e a bela imagem de uma “estupa” que ocupa página e meia merece dele a seguinte tirada: «Tudo isto está agora muito diferente…». Duas folhas adiante: «Este também já não está assim». «Mas porquê?», pergunto. «O departamento de Arqueologia está sob a jurisdição dos birmaneses e eles fazem o que lhes apetece sem dar justificações a ninguém. Os ingleses ainda foram preservando; os birmaneses só destruíram». Aung refere ainda o corte sistemático de centenas de cabeças de estátuas de Budas (entretanto repostas) «no templo das noventa mil imagens», ou seja, o templo de Koe-thaung. Na altura em que o visitou na companhia de Pamela Gutman, «faziam-se escavações e eu bem vi essas imagens mutiladas…». Mas há casos mais actuais.

O cemitério da velha igreja anglicana de Sittwe, por exemplo, não há muito tempo, e por ordem de uma alta patente militar, foi arrasado a “bulldozer”. «Uma perda irreparável, pois era um verdadeiro repositório histórico». Aung recorda-se de o visitar, adolescente ainda, e entreter-se a ler as lápides. Além das datas de nascimento e óbito, explanada era também a razão dos funestos infortúnios. «Um deles, por exemplo, morrera num acidente numa plantação de chá; outro fora comido por tubarões enquanto nadava no rio Kaladan… Deveras interessantes todas essas informações inscritas no mármore. Mas veio esse indivíduo, e destruiu tudo».

Aproveito a deixa e pergunto-lhe acerca da comunidade católica local. Nada de muito conclusivo. Confirma a existência de uma igreja dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e uma outra de confissão baptista, o resultado dos missionários norte-americanos liderados por Judson. «Os chins são todos baptistas», esclarece. Feito o interregno religioso prosseguem os desabafos, agora de natureza diversa: «Triste sina a nossa. Vendem o nosso gás à China e agora vemo-nos obrigados a cortar a floresta para a usar como “fuel”… Está a ver o que isso acarreta em termos de alterações climáticas? O peixe também desapareceu».

O professor não pára de folhear o livro e ao deparar com a foto de um casal em traje tradicional aproveita para trazer à baila a ancestral relação de Arracão com a Indonésia, via Hinduísmo. «Os trajes das dançarinas balinesas são muito similares aos nossos, muito mais do que com os birmaneses». Mas houve movimentos migratórios forçados mais recentes. «Os holandeses, que chegaram a ter feitoria em Mrauk U, compravam os nossos escravos, muitos dos quais pessoas acusadas de alta traição, e vendiam-nos depois em Java, onde eram postas a trabalhar nas plantações de arroz. Outros seguiam para as Malucas, para o cultivo e apanha da noz moscada», diz.

Joaquim Magalhães de Castro

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